Ontem
vi um carro com pessoas em cima, sentadas numa posição que parecia tudo menos
confortável. Era de noite e fazia frio, tanto quanto é possível fazer aqui. Não
estavam sentadas no carro, directamente no metal, mas em cima de uma espécie de
cadeiras invisíveis. As pessoas também não eram reais, ou deixaram de o ser
quando cheguei mais perto, num qualquer efeito à Toy Story. Eram duas, ele e ela. Não
deviam caber mais no carro, que era pequeno. Ao longe eram certamente pessoas,
a olhar para cima e a ver o céu estrelado pelo frio. As pessoas fazem isso, às
vezes, só que não o fazem em Lisboa. Ou no Inverno. O frio faz a noite ficar
ainda mais negra, e as estrelas brilham mais fortes no escuro. Enquanto ia
andando ao encontro deles, não por bisbilhotice mas visto que permaneciam quietos
– eles e o carro – a meio do meu trajecto, fui imaginando que estavam a ver a
beleza do céu e da vida e do mundo, a pensar em como somos pequenos e mais
pequenos são os nossos problemas, a pensar na sorte que temos em estar vivos,
sorte que não parece surgir noutros astros. Cheguei a conceber que ainda havia
pessoas que queriam ver as coisas boas, que não se deixavam ofuscar por
anúncios governamentais de prosperidade, pessoas que preferiam ver estrelas a
ir fazer vigílias alcoólicas aos ministérios da pobreza e da tristeza. Cheguei
a imaginar que ainda havia pessoas que namoravam àquela meia-luz do
antigamente, que eles preferiam o ar frio ao sofá. Supus, na minha ingenuidade,
que talvez fosse uma ocupação mais prazerosa do que alternar entre pessoas
fechadas noutra casa e crianças a cantar, na televisão, ele, e ela a fazer
chamadas tolas, gastando dinheiro para brincar a Deus. Imaginei muito, porque a
minha cabeça corre mais do que as pernas entorpecidas e congeladas, mas
eventualmente cheguei perto suficiente. O mundo, afinal, é o mesmo, e só há
esperança para as pessoas de faz-de-conta, as únicas que olham o firmamento em
Dezembro.
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