sábado, 18 de janeiro de 2014

O vestido encarnado

Ela era alta e morena, mas com tom de pele assim cor de algodão. Tinha aquela indecifrável beleza de quem anda com o cabelo apanhado na nuca e usa óculos quadrados de arquitecto. Aquela beleza de parecer um bongo visto de cima. Um bongo de óculos. Trabalhava naquela cafetaria bem americana de avental azul justo à cintura, com seu nome brilhante numa placa ao peito, saltos de tropeçar alto e bule na mão. Bule de plástico na mão, de mesa em mesa ou no balcão.

Ele usava fato escuro a tinha uma barba rente que lhe dava um ar marítimo. Um ar de quem faz vela antes de entrar no elevador do escritório. Tinha aquele charme da meia-idade que mantém as pernas finas mesmo quando a barriga começa a fazer uma curvinha.

Ela foi à mesa dele, de bule na mão.

- Senhor, posso anotar o seu…
- Cristina? Não acredito, és mesmo tu Cristina?
- Mas eu não…

(Ele interrompe e fala depressa sem desligar seus olhos dos olhos dela)

- Eu não acredito. Continuas igual Cristina, mesmo passados tantos anos. Ah! Não acredito. Sim, eu devia ter-me lembrado que moravas aqui. Mudei-me há poucas semanas, nunca pensei que te pudesse voltar a encontrar. Mas estás aqui, e continuas linda. Estás aqui Cristina...

(Ele sorri aquele sorriso emocionado que soluça de vez em quando)

- Senhor, deve ser algum…
- Não me chames de Senhor, chama-me de Pedro. Senta, senta aqui.

(Ele segura o bule com a mão direita, e com a esquerda puxa delicadamente o braço dela)

(Ele continua, agora mais pausado)

- Quantos anos passaram Cristina? Sete? Oito anos? Eu nunca me esqueci daquelas nossas férias nas Ilhas. Eramos tão jovens, mas nunca me esqueci de ti. Lembraste que tudo começou quando eu quase de atropelei com minha mota à saída do aeroporto, no dia que chegaste? Ah! Eramos tão jovens. Eramos tão descuidados. Eu fiquei apavorado. O teu ar tão frágil, tão delicado, tão orquídea de jardim…
- Mas eu nunca fui…
- Tu foste tão compreensiva. Saímos do hospital com um jantar marcado, quem diria, depois de quase te atropelar? Ah! Contado assim parece mentira. E que jantar que foi, Cristina. No terraço junto ao mar, sobre a água cristalina do Índico que reflectia nos teus olhos que reflectiam nos meus. A lua. Lembraste de como a lua se distorcia na ondulação do horizonte? E então, discretamente, o meu indicador e o do meio caminhavam para junto da tua mão, entrelaçando-se no silêncio da alvorada…

(Ele olha profundamente os olhos dela, que cora ainda ecoando a sua voz grave e segura)

- Mas eu não me lembro…
- E depois veio aquele dia inesquecível. Éramos tão jovens e tão românticos e tu estavas lá, na proa do nosso barco, fechando os olhos para o vento quente do continente. Estavas lá tão verdadeira, tão margarida a respirar o sol. Eu abracei-te assim colocando o queixo no teu ombro, embrulhando o teu ventre com minha palma enquanto a outra deslizava pelo ombro. Lembro-me do teu cheiro de jasmim. De jasmim orvalho. E então, quando o mar agitou e respingou na tua cara tu assustaste-te, e fizeste aquele olhar de peixe-balão. Viraste-te com o cabelo colado no contorno da cara, sorrindo como uma criança no natal, e eu vi aquela gota que se soltou da tua franja, driblou o limite da tua sobrancelha e caiu assim… no limite do teu lábio. E eu fui atrás dela. Também te lembras do nosso primeiro beijo, não lembras?

(Ela não respondeu, continuou corada e sorriu)

- Vamos jantar amanhã. Vamos comer um Chateaubriand, isso, eu lembro-me que tu adoras. Apanho-te aqui às 20h30, combinado Cristina? Leva aquele vestido encarnado que eu adoro. Sim?

(Ela hesita e solta um sim trémulo)

- Sim…

Ele levanta-se, aperta o botão de cima do casaco e coloca o chapéu. Mas quem é que ainda usa chapéu hoje em dia? Ele usa. Deu-lhe um beijo lento na bochecha, atrevidamente perto da boca dela. Ela não se mexeu. Continua sem se mexer. Soltou mais um sorriso. E então, quando ele abria a porta daquela cafetaria bem americana virou-se e perguntou:

- Rosas ainda são as tuas preferidas?
- Sempre foram.

Ela chegou no apartamento e caiu no sofá enquanto descalçava um sapato com o outro. No branco do tecto tentou encontrar um sinal que explicasse a loucura do dia. Será que uma mentira muito bem contada se poderia transformar numa verdade? Nunca tinha viajado. Nunca tinha pisado num barco. Nunca tinha recebido rosas. Nunca nada. Mas adoraria. A verdade é que adoraria.

Ela chegou no apartamento e caiu no sofá enquanto descalçava o outro sapato com o pé. O que seria um Chateaubriand? Um peixe esquisito? Sim, deve ser um peixe esquisito. Ou um pássaro. Ela prometeu que não ia tentar descobrir até amanhã. Queria mais uma surpresa, pelo menos mais uma. Seja o que deus quiser. Já chega a dor de cabeça de ter que encontrar, assim, de um dia para o outro, um vestido encarnado.

Ele chegou no apartamento e caiu no sofá enquanto desapertava o cinto das calças. Cintos incomodam muito mais do que sapatos. Ele? Bem, ele estava tranquilo. Faz sempre a mesma brincadeira quando vê uma moça bonita com o nome brilhante numa placa ao peito.

Sem comentários:

Enviar um comentário