Ela era alta e
morena, mas com tom de pele assim cor de algodão. Tinha aquela indecifrável
beleza de quem anda com o cabelo apanhado na nuca e usa óculos quadrados de
arquitecto. Aquela beleza de parecer um bongo visto de cima. Um bongo de
óculos. Trabalhava naquela cafetaria bem americana de avental azul justo à
cintura, com seu nome brilhante numa placa ao peito, saltos de tropeçar alto e
bule na mão. Bule de plástico na mão, de mesa em mesa ou no balcão.
Ele usava fato
escuro a tinha uma barba rente que lhe dava um ar marítimo. Um ar de quem faz
vela antes de entrar no elevador do escritório. Tinha aquele charme da
meia-idade que mantém as pernas finas mesmo quando a barriga começa a fazer uma
curvinha.
Ela foi à mesa
dele, de bule na mão.
- Senhor, posso
anotar o seu…
- Cristina? Não
acredito, és mesmo tu Cristina?
- Mas eu não…
(Ele interrompe e
fala depressa sem desligar seus olhos dos olhos dela)
- Eu não
acredito. Continuas igual Cristina, mesmo passados tantos anos. Ah! Não
acredito. Sim, eu devia ter-me lembrado que moravas aqui. Mudei-me há poucas
semanas, nunca pensei que te pudesse voltar a encontrar. Mas estás aqui, e continuas
linda. Estás aqui Cristina...
(Ele sorri aquele
sorriso emocionado que soluça de vez em quando)
- Senhor, deve
ser algum…
- Não me chames
de Senhor, chama-me de Pedro. Senta, senta aqui.
(Ele segura o
bule com a mão direita, e com a esquerda puxa delicadamente o braço dela)
(Ele continua,
agora mais pausado)
- Quantos anos
passaram Cristina? Sete? Oito anos? Eu nunca me esqueci daquelas nossas férias nas Ilhas. Eramos tão jovens, mas nunca me esqueci de ti. Lembraste que tudo começou
quando eu quase de atropelei com minha mota à saída do aeroporto, no dia que
chegaste? Ah! Eramos tão jovens. Eramos tão descuidados. Eu fiquei apavorado. O
teu ar tão frágil, tão delicado, tão orquídea de jardim…
- Mas eu nunca
fui…
- Tu foste tão
compreensiva. Saímos do hospital com um jantar marcado, quem diria, depois de
quase te atropelar? Ah! Contado assim parece mentira. E que jantar que foi,
Cristina. No terraço junto ao mar, sobre a água cristalina do Índico que
reflectia nos teus olhos que reflectiam nos meus. A lua. Lembraste de como a lua
se distorcia na ondulação do horizonte? E então, discretamente, o meu indicador
e o do meio caminhavam para junto da tua mão, entrelaçando-se no silêncio da
alvorada…
(Ele olha
profundamente os olhos dela, que cora ainda ecoando a sua voz grave e segura)
- Mas eu não me
lembro…
- E depois veio aquele
dia inesquecível. Éramos tão jovens e tão românticos e tu estavas lá, na proa
do nosso barco, fechando os olhos para o vento quente do continente. Estavas lá
tão verdadeira, tão margarida a respirar o sol. Eu abracei-te assim colocando o
queixo no teu ombro, embrulhando o teu ventre com minha palma enquanto a outra
deslizava pelo ombro. Lembro-me do teu cheiro de jasmim. De jasmim orvalho. E
então, quando o mar agitou e respingou na tua cara tu assustaste-te, e fizeste
aquele olhar de peixe-balão. Viraste-te com o cabelo colado no contorno da
cara, sorrindo como uma criança no natal, e eu vi aquela gota que se soltou da tua
franja, driblou o limite da tua sobrancelha e caiu assim… no limite do teu
lábio. E eu fui atrás dela. Também te lembras do nosso primeiro beijo, não
lembras?
(Ela não
respondeu, continuou corada e sorriu)
- Vamos jantar
amanhã. Vamos comer um Chateaubriand, isso, eu lembro-me que tu adoras.
Apanho-te aqui às 20h30, combinado Cristina? Leva aquele vestido encarnado que
eu adoro. Sim?
(Ela hesita e
solta um sim trémulo)
- Sim…
Ele levanta-se,
aperta o botão de cima do casaco e coloca o chapéu. Mas quem é que ainda usa
chapéu hoje em dia? Ele usa. Deu-lhe um beijo lento na bochecha, atrevidamente perto
da boca dela. Ela não se mexeu. Continua sem se mexer. Soltou mais um sorriso.
E então, quando ele abria a porta daquela cafetaria bem americana virou-se e
perguntou:
- Rosas ainda são
as tuas preferidas?
- Sempre foram.
Ela chegou no
apartamento e caiu no sofá enquanto descalçava um sapato com o outro. No branco
do tecto tentou encontrar um sinal que explicasse a loucura do dia. Será que
uma mentira muito bem contada se poderia transformar numa verdade? Nunca tinha
viajado. Nunca tinha pisado num barco. Nunca tinha recebido rosas. Nunca nada. Mas
adoraria. A verdade é que adoraria.
Ela chegou no
apartamento e caiu no sofá enquanto descalçava o outro sapato com o pé. O que
seria um Chateaubriand? Um peixe esquisito? Sim, deve ser um peixe esquisito. Ou
um pássaro. Ela prometeu que não ia tentar descobrir até amanhã. Queria mais
uma surpresa, pelo menos mais uma. Seja o que deus quiser. Já chega a dor de
cabeça de ter que encontrar, assim, de um dia para o outro, um vestido
encarnado.
Ele chegou no
apartamento e caiu no sofá enquanto desapertava o cinto das calças. Cintos
incomodam muito mais do que sapatos. Ele? Bem, ele estava tranquilo. Faz sempre
a mesma brincadeira quando vê uma moça bonita com o nome brilhante numa placa
ao peito.
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