Nos
últimos dias tenho visto a saudade. Vejo-a atrás de mim, vejo-a a seguir-me. Mais
ninguém a vê, aparentemente. É bonita, não é simpática. Eu vejo-a, bem de
frente, mas ela não me olha, não me quer olhar. É como se estivesse sempre a
olhar para outro lado, a fazer outra coisa, a ver algo mais, mas soubesse sempre onde me encontrar. Não é
como a sombra, não é um mero efeito de luz que nos persegue indiscriminadamente.
A saudade simplesmente está ali. Tenho medo de a tocar, mas sei que conseguia,
se quisesse. Às vezes olho para trás, para ver se ela lá está, e vejo sempre
que sim. Às vezes como se aparecesse de repente quando me viro, como se ainda
tivesse o vestido a voar, acabada de chegar ao local. A saudade é uma mulher, é
sempre uma mulher. Não faz sentido de outra forma. Está sempre impecavelmente
bem-vestida, sempre no seu melhor, sempre como esperamos que esteja. A saudade
é a melhor das mulheres, melhor do que todas as outras. Cheira ao cheiro do
quarto pela manhã, cheira ela e a nós, tudo junto e misturado. Quando me deito
ela vem comigo, eu vejo-a a entrar na cama, sem desmanchar os lençóis, e a
virar-me as costas para que eu a vá abraçar e aquecer. Não lhe toco, mas
viro-me para ela. Tenho adormecido a ver-lhe os cabelos, a ouvir-lhe a respiração
que eu sei que está lá. Deixo-lhe o pijama dela na almofada, mas sei que não
precisa. Quando sonho, vejo-a a olhar-me nos olhos. Não sei se é a saudade ou
se é mesmo ela, mas olha-me nos olhos, e eu abraço-a. Acordo de seguida. A
saudade já não está ali, comigo. Ela volta quando lhe apetece, ou quando me
apetece. Volta quando tem de voltar. Pena ter de voltar tantas vezes.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
Margarida
Tenho um pecado
que nunca confessei, e ainda acho que vou parar ao inferno por causa disso. Eu
era criança e devia ter uns seis ou sete anos, não me lembro bem. Era Outono e
eu estava a passear entre as árvores da nossa quinta lá em Vila Real. Nós tínhamos
muitas árvores de tudo quanto era fruta e havia muita fartura o ano inteiro. Ao
longe eu vi um garotinho pobrezinho assim da minha idade a roubar maçãs das
nossas árvores e aproximei-me. Quando ele se apercebeu que eu estava a ser
observado começou a preparar-se para fugir e eu disse ‘fica, não tem problema.
Leva quantas quiseres’. Ele hesitou, olhou-me nos olhos e só então continuou a
apanhar todas as que conseguia. Mas eram tantas as maçãs que ele queria carregar
que eu disse-lhe para dobrar a sua camisola e ajudei a improvisar uma sacola em
frente à sua barriga. Quando já não cabia nem mais uma fruta ele olhou-me nos
olhos, cansado, com as duas mãos fortemente agarradas no limite da sacola
improvisada, e sorriu. Não sei se ele ia agradecer-me, talvez fosse. Nesse
mesmo instante em que ele olhou para mim, preparado para partir, comecei a enche-lo
de bofetadas. Tantas mas tantas bofetadas. Até hoje eu não consigo perceber
porque bati tanto no pobre rapaz. Eu sabia que ele não ia largar as maçãs e por
isso ele não saía do lugar. Eu nunca tinha batido em ninguém. As minhas irmãs
batiam-me quando fazia alguma coisa errada. 'Deve ser bom bater nos outros', acho que foi
o que eu pensei na altura. Foi a única vez que bati em alguém. Não gostei.
Espero que não vá parar ao inferno por causa disso.
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
abriu a época de caça
Dei com o facebook do Portugal Pró-Vida. Isso mexeu, de certa forma, com aquilo que penso.
Vejamos esta imagem. Sou sensível a estas coisas.
Vejam a felicidade da criança. A forma terna mas convicta com que diz sim à vida. O sorrir com os olhos azuis. Toda ela agradece à vida. Imagino a sessão fotográfica. Alguém que lhe pergunta, és pró vida? E a crinaça logo brilha e grita Sim Sim Sim. O polegar serve de haste de bandeira. Uma bandeira que também gritaria Sim Sim Sim, e que só não foi fotografada por não precisar de o ser. Uma criança tão certa, com a sabedoria que é tão infantial quão verdadeira e genuína. Se ela tem tantas certezas quanto a apoiar o Portugal Pró Vida, quem sou eu para não o fazer. Pergunta-me, e tu? e dei comigo a sussurrar Sim Sim Sim.
E foi de ficha quase assinada, dinheiro pronto para a primeira quota, coração cheiro de amor, que dei com isto...
E é por isso que continuo um progressita reviralhista anti vida :(
já que falas nisso
É uma pergunta interessante Luís.
Há quem diga que era isso que o Zeca Afonso queria afirmar de uma forma literal: o povo é quem mais ordena, sempre e em todo o lado.
Mas há também quem ache que esse dito é discriminatório para a grande extensão de área rural do nosso país, pelas palavras que lhe seguem: o povo é quem mais ordena, dentro de ti ò cidade. Já passei por aldeias onde ouvir o nome Zeca Afonso é sacrilégio, por se pensar que a cantiga do homem foi forma de incentivo ao despotismo fora dos grandes centros urbanos.
Uma terceira facção, menos falada nos dias de hoje, defende que a intenção do Zeca era somente despoletar uma comuna popular, bem contida em Grândola. Mais, essa forma de governo haveria de promover Grândola de vila a cidade, mal o povo fosse soberano.
Das três uma, ou cidade é uma forma de alegoria e a cantiga diz respeito ao país inteiro; ou cidade utiliza-se com o propósito de afirmar que o povo só conseguirá ordenar longe das zonas rurais; ou o povo, na realidade, só tem o direito de ordenar em Grândola.
Não sei a resposta à tua pergunta, o meu coração divide-se pelas três hipóteses. O Zeca Afonso morreu. Mas a memória histórica do nosso Portugal não pode resvalar quanto a esta questão. Acho, sinceramente, que devíamos de uma vez por todas sondar os portugueses e democratizar uma resposta para essa dúvida acutilante. É claramente uma matéria de consciência. Proponho um referendo. Talvez estejas em melhor posição para fazer chegar esta proposta à JSD. Continuava a custar dinheiro e preencher agenda política, mas referendar este tema até tem a pequena vantagem de não estar a perguntar ao povo o que acha acerca de vedar direitos e discriminar uma parte desse povo.
domingo, 19 de janeiro de 2014
sábado, 18 de janeiro de 2014
O vestido encarnado
Ela era alta e
morena, mas com tom de pele assim cor de algodão. Tinha aquela indecifrável
beleza de quem anda com o cabelo apanhado na nuca e usa óculos quadrados de
arquitecto. Aquela beleza de parecer um bongo visto de cima. Um bongo de
óculos. Trabalhava naquela cafetaria bem americana de avental azul justo à
cintura, com seu nome brilhante numa placa ao peito, saltos de tropeçar alto e
bule na mão. Bule de plástico na mão, de mesa em mesa ou no balcão.
Ele usava fato
escuro a tinha uma barba rente que lhe dava um ar marítimo. Um ar de quem faz
vela antes de entrar no elevador do escritório. Tinha aquele charme da
meia-idade que mantém as pernas finas mesmo quando a barriga começa a fazer uma
curvinha.
Ela foi à mesa
dele, de bule na mão.
- Senhor, posso
anotar o seu…
- Cristina? Não
acredito, és mesmo tu Cristina?
- Mas eu não…
(Ele interrompe e
fala depressa sem desligar seus olhos dos olhos dela)
- Eu não
acredito. Continuas igual Cristina, mesmo passados tantos anos. Ah! Não
acredito. Sim, eu devia ter-me lembrado que moravas aqui. Mudei-me há poucas
semanas, nunca pensei que te pudesse voltar a encontrar. Mas estás aqui, e continuas
linda. Estás aqui Cristina...
(Ele sorri aquele
sorriso emocionado que soluça de vez em quando)
- Senhor, deve
ser algum…
- Não me chames
de Senhor, chama-me de Pedro. Senta, senta aqui.
(Ele segura o
bule com a mão direita, e com a esquerda puxa delicadamente o braço dela)
(Ele continua,
agora mais pausado)
- Quantos anos
passaram Cristina? Sete? Oito anos? Eu nunca me esqueci daquelas nossas férias nas Ilhas. Eramos tão jovens, mas nunca me esqueci de ti. Lembraste que tudo começou
quando eu quase de atropelei com minha mota à saída do aeroporto, no dia que
chegaste? Ah! Eramos tão jovens. Eramos tão descuidados. Eu fiquei apavorado. O
teu ar tão frágil, tão delicado, tão orquídea de jardim…
- Mas eu nunca
fui…
- Tu foste tão
compreensiva. Saímos do hospital com um jantar marcado, quem diria, depois de
quase te atropelar? Ah! Contado assim parece mentira. E que jantar que foi,
Cristina. No terraço junto ao mar, sobre a água cristalina do Índico que
reflectia nos teus olhos que reflectiam nos meus. A lua. Lembraste de como a lua
se distorcia na ondulação do horizonte? E então, discretamente, o meu indicador
e o do meio caminhavam para junto da tua mão, entrelaçando-se no silêncio da
alvorada…
(Ele olha
profundamente os olhos dela, que cora ainda ecoando a sua voz grave e segura)
- Mas eu não me
lembro…
- E depois veio aquele
dia inesquecível. Éramos tão jovens e tão românticos e tu estavas lá, na proa
do nosso barco, fechando os olhos para o vento quente do continente. Estavas lá
tão verdadeira, tão margarida a respirar o sol. Eu abracei-te assim colocando o
queixo no teu ombro, embrulhando o teu ventre com minha palma enquanto a outra
deslizava pelo ombro. Lembro-me do teu cheiro de jasmim. De jasmim orvalho. E
então, quando o mar agitou e respingou na tua cara tu assustaste-te, e fizeste
aquele olhar de peixe-balão. Viraste-te com o cabelo colado no contorno da
cara, sorrindo como uma criança no natal, e eu vi aquela gota que se soltou da tua
franja, driblou o limite da tua sobrancelha e caiu assim… no limite do teu
lábio. E eu fui atrás dela. Também te lembras do nosso primeiro beijo, não
lembras?
(Ela não
respondeu, continuou corada e sorriu)
- Vamos jantar
amanhã. Vamos comer um Chateaubriand, isso, eu lembro-me que tu adoras.
Apanho-te aqui às 20h30, combinado Cristina? Leva aquele vestido encarnado que
eu adoro. Sim?
(Ela hesita e
solta um sim trémulo)
- Sim…
Ele levanta-se,
aperta o botão de cima do casaco e coloca o chapéu. Mas quem é que ainda usa
chapéu hoje em dia? Ele usa. Deu-lhe um beijo lento na bochecha, atrevidamente perto
da boca dela. Ela não se mexeu. Continua sem se mexer. Soltou mais um sorriso.
E então, quando ele abria a porta daquela cafetaria bem americana virou-se e
perguntou:
- Rosas ainda são
as tuas preferidas?
- Sempre foram.
Ela chegou no
apartamento e caiu no sofá enquanto descalçava um sapato com o outro. No branco
do tecto tentou encontrar um sinal que explicasse a loucura do dia. Será que
uma mentira muito bem contada se poderia transformar numa verdade? Nunca tinha
viajado. Nunca tinha pisado num barco. Nunca tinha recebido rosas. Nunca nada. Mas
adoraria. A verdade é que adoraria.
Ela chegou no
apartamento e caiu no sofá enquanto descalçava o outro sapato com o pé. O que
seria um Chateaubriand? Um peixe esquisito? Sim, deve ser um peixe esquisito. Ou
um pássaro. Ela prometeu que não ia tentar descobrir até amanhã. Queria mais
uma surpresa, pelo menos mais uma. Seja o que deus quiser. Já chega a dor de
cabeça de ter que encontrar, assim, de um dia para o outro, um vestido
encarnado.
Ele chegou no
apartamento e caiu no sofá enquanto desapertava o cinto das calças. Cintos
incomodam muito mais do que sapatos. Ele? Bem, ele estava tranquilo. Faz sempre
a mesma brincadeira quando vê uma moça bonita com o nome brilhante numa placa
ao peito.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Aqui jazz (II)
Chego à conclusão que o assunto destas próximas linhas vais ser a vergonha.
O Aqui Jazz era, de facto, o melhor bar da Guarda. O seu fim é de uma pena vergonhosa.
Já que o assunto foi levantado, quero trazer para a conversa uma banda. São os Portico Quartet. De há uns tempos para cá, a circunstância fez-me associar esse seu nome a um grupo terrorista de linchamento de pórticos de portagem. Nem essa imagem pouco romântica tirou da minha cabeça um pouco que fosse do prazer de os ouvir. Já falei deles há uns tempos, e é uma vergonha eu ser tão repetitivo. A minha música favorita é esta,
acho cada vez que a ouço imagino uma curta metragem qualquer. Talvez a música arrisque ser herética ao tentar contar uma história se apoiar nas palavras. Mas por falar em histórias,
o instrumento que dá um som tão característico a estes tipos aparece aqui logo no inicio desta música. Chama-se Hang e foi criado apenas em 2000. Se souberem dum instrumento mais novo que este avisem. Diz que só há duas pessoas no mundo a construi-los. Fazem-se por encomenda. Cada um custa uns parcos mil ou dois mil e tal dólares, e é uma vergonha que não me paguem por este espaço publicitário. É também uma vergonha ter roubado, além do tema, o formato ao Felipe. Como penitência, abro o meu coração à partilha e confesso-vos a minha segunda musica favorita,
No fundo, a vergonha é um útil mecanismo de defesa. No quotidiano, talvez contra a exuberância ou os maus-costumes. Paralisa-nos quando tem que paralisar. Ou faz-nos agir quando a inércia se transforma em desconforto. Aqui, defendeu-me de não ter coisa nenhuma para falar. Que vergonha.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
Na janela de São Paulo
Quando na janela de São Paulo vi esta chuva tropical bíblica, pensei logo nos coitados dos mosquitos. Imagina se fosses um mosquito no meio de uma tempestade tropical. Ou pior, um mosquito sem abrigo numa tempestade tropical. Ou pior ainda, um mosquito com excesso de peso e sem abrigo numa tempestade tropical. Que merda hã?
Mas calma. Não fiques triste nem preocupado/a. Eu fui pesquisar a vasta literatura sobre o assunto, e descobri o seguinte: "O estudo mostra que só há risco de morte quando os mosquitos voam muito perto do chão durante a chuva. A gota que atinge o inseto pode carregá-lo por uma distância de até vinte vezes o seu tamanho e, ao voar próximo ao chão, o animal pode não ter tempo de se separar da gota e colidir com o solo ou se afogar em uma poça de água".
E aí fiquei mais descansado. Acho que se eu fosse um mosquito não seria daqueles covardes que chupam tornozelos. Adoro pescoços. E vôos altos.
Mas calma. Não fiques triste nem preocupado/a. Eu fui pesquisar a vasta literatura sobre o assunto, e descobri o seguinte: "O estudo mostra que só há risco de morte quando os mosquitos voam muito perto do chão durante a chuva. A gota que atinge o inseto pode carregá-lo por uma distância de até vinte vezes o seu tamanho e, ao voar próximo ao chão, o animal pode não ter tempo de se separar da gota e colidir com o solo ou se afogar em uma poça de água".
E aí fiquei mais descansado. Acho que se eu fosse um mosquito não seria daqueles covardes que chupam tornozelos. Adoro pescoços. E vôos altos.
sexta-feira, 10 de janeiro de 2014
Aqui jazz (I)
Uma série sobre
música. Sobre músicos, melhor. Aqui jazz, em primeiro lugar, porque é aqui. E não que aqui só possam
jazer notas de jazz, mas notas de jazz marcam o padrão do que merece estar
jazido aqui. Em terceiro, porque já jazem a maior parte dos que me jazzem.
(Por último, porque
é o melhor bar da Guarda).
Vamos inaugurar
com Eugênio Avelino (nem jaz nem jazz). Mais conhecido por Xangai, que era o
nome da gelataria do pai dele em sua cidade natal, em Vitória da Conquista,
interior da Bahia, Brasil. No sertão. Parece que todos os discos dele moram na
estante lá de casa. Como desconfio sempre de capas a preto e branco, nunca
ouvi. Mas devia ter ouvido.
Como quase sempre
acho chatas as críticas de musicólogos (muitas palavras), vou tentar deixar
apenas a essência. Sim, esta até poderia ser uma série de essências, de dar uma
picada para ver se faz reacção. Três músicas, três picadas. Vamos lá.
A primeira coisa
que me impressiona em Xangai é a sua aparente imortalidade. Parece que os
últimos 20 anos contornaram a sua cara, voz e energia. Um concerto dele é uma
experiência brilhante.
E embora Xangai seja
mais intérprete do que compositor, parece trazer nas letras da sua voz uma herança
de tal forma autêntica que lhe confere uma propriedade histórica arrepiante.
E claro que
também escolhe aquela poesia bela e inocente (que imagino cantada com um
sorriso no canto da boca) que canta o encanto daquela mulher.
"Um passo formoso é a moça
Uma árvore frondosa
É o seu dorso"
Uma árvore frondosa
É o seu dorso"
Confesso que começar
com música regional brasileira é um movimento egoísta. É também uma picada para
ver se outros Mentirosos me brindam com seus jazigos. Seria uma delícia. Na
falta de tema ficcional ou construção sobre a realidade, vou-vos apresentando
notas que talvez gostem um dia. Ou não.
Até jazz
quinta-feira, 9 de janeiro de 2014
Anita e as dúvidas
Despreocupadas e sentadas num banco de
jardim, as duas amigas conversavam com tempo. O diálogo perdia-se em
profundidade. Era coisa que de alguns meses a esta parte lhes causava
desconforto: notar que nas suas vidas os temas verdadeiramente
interessantes só lhes ocupam o pensar nas alturas despreocupadas. Às
tantas ter os pés bem assentes na terra faz esquecer o lugar da
cabeça.
- mas afinal o que é que nos move? -
perguntava Anita. Os carros, as pernas, as bicicletas e os aviões,
as leis da física, literal e obviamente. Mas o mover que acontece
antes do mexer. O que nos move? O que nos move para acordar de manhã
e não desejar viver dentro de uma incubadora capaz de somente nos
deixar existir? Move-nos o trabalho? E o que nos move para trabalhar?
Trabalhamos para nos podermos mover? Movem-nos os sentidos que não
mais são do que mecanismos de sobrevivência?
- é a dúvida Anita. A dúvida
move-nos a cada dia. Não sabes nada, não te conheces a ti própria.
Tens uma consciência sem idade, nem sabes se mais velha ou nova do
que tu. Não há certezas escritas sobre o amanhã e sobre o ontem
nem podes distinguir o credível do verdadeiro. É a dúvida que te
move. Não sabes quem és.
- Talvez. Mas às vezes acho que isso é
um incómodo. Tanta dúvida. Queria que existisse uma
espécie de bar. Único no país, por isso chamado Singular. A festa
de inauguração seria anunciada nas redes sociais, e eu haveria de me
aprontar horas antes da hora de abertura divulgada. Ali, à espera,
no inicio da fila. Abrem as portas e o interior vazio enche-me de
certeza. Penso 'quem sou eu?' e grito 'eu sou a primeira pessoa do
Singular.' Sei a resposta mais importante e estou certa, vês?
Depois disso vou continuar a mover-me?
- Claro, já que estás num bar ouve
música e aproveita para dançar.
segunda-feira, 6 de janeiro de 2014
Sobre a mentira.
Não é pelo nome do blogue que este texto é sobre a mentira.
Podia ser, mas não é. É por causa de um filme dinamarquês (sim, todo falado na
língua que eles por lá falam), cujo nome em inglês é “The Hunt”.
O filme trata da vida de um homem (Mads Mikkelsen, mais
conhecido por ser o Hannibal da série, é o actor principal) numa pacata
terrinha algures na Dinamarca, e cuja vida se altera radicalmente por causa de
uma mentira. Mais concretamente, por causa de uma mentira de uma criança, em
que todos acreditam porque, e cito o filme, “as crianças não mentem”.
Este é o primeiro ponto que me faz escrever sobre isto. Na
minha cabeça, as crianças são pequenos seres mentirosos, que mentem sobre quem
comeu as bolachas ou riscou as paredes ou partiu o vaso. Mas pensando melhor,
talvez o filme tenha razão. As crianças não têm tantas motivações para mentir
como um adulto, por não serem tão capazes de perceber as possíveis consequências
nefastas de uma verdade. Também não terão capacidade para o fazer. Capacidade
ao nível intelectual, de criar uma situação hipotética, ou capacidade ao nível
físico, pois uma mentira tem implicações ao nível do sistema nervoso. As
crianças não mentem? Provavelmente sim, mas de uma maneira mais simples, menos
requintada, menos ponderada, e mais fugaz (à primeira ameaça de castigo, as
bolachas já não se comeram sozinhas). O filme pareceu-me forçado nesta
assunção, mas talvez tenha razão.
O segundo ponto é o de que uma mentira por vezes pode ter
mais peso que a verdade, como o filme parece querer demonstrar. Outra vez, não
me parece assim tão linear. Na minha cabeça, uma mentira e uma verdade têm a
mesma força, sendo essa, no fundo, a força da informação transmitida e da
credibilidade da pessoa que a transmitiu. Por isso é que em certos temas é mais
fácil acreditar numa só coisa, seja ela verdade ou mentira. O filme
revolta-nos, provavelmente, apenas por sabermos a verdade, porque se
estivéssemos lá naturalmente que não seria tão linear.
Quanto ao filme, em si, deve andar pelos Oscars para melhor
filme estrangeiro (pedir a nomeação para melhor actor é puxado, mas não
desmerecido: para quem viu Hannibal, ele aqui tem emoções, um monte delas). Um
filme sem um clímax, sem grandes momentos de antecipação, sem artifícios nem
manhas para fazer o espectador soltar umas lágrimas. Mas isso não quer dizer
que não atinja o objectivo: é possível que a revolta acumulada dentro de nós
nos transborde pelos olhos, em cenas tão banais como uma ida ao supermercado.
Mas é um choro de que nem damos conta, um choro silencioso e imperceptível de
revolta interior.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
1 de Janeiro
Qual será a sensação de acordar no primeiro dia do ano e pensar: fodasse, que dia é hoje?
A verdade é que quanto mais uma
pessoa celebra o fim de um ano pior será o primeiro dia do ano seguinte.
A
festa deveria ser no dia 1 de Janeiro.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
hunger games e imperialismo
A história gira em torno de uns jogos organizados numa cidade faustosa. Nesses jogos, 24 adolescentes têm de lutar até à morte para descobrir o vencedor anual. Os jogadores são forçosamente recrutados de 12 distritos paupérrimos, subjugados pelo governo totalitário da grande cidade próspera. Diz-se que o governo da cidade garante a paz, e que os jogos são uma forma de castigar os 12 distritos que no passado, revoltosos, semearam a guerra.
Para quem viu ou verá o dito filme, talvez não seja paranóico reparar nalguns pormenores interessantes. A cidade vive ricamente. Os seus habitantes são livres e saudáveis. O apego pela moda e a exuberância são visíveis. Os Patrocinadores, entidades dessa cidade, escolhem os seus jogadores preferidos, sendo esse um investimento completamente livre e pessoal. Sugere-se um sistema económico individualista e liberal. Uma espécie de vértice superior de uma pirâmide. Na base, os 12 distritos. Cada um deles produz uma determinada matéria prima. A presença militar da grande cidade, nesses distritos, é uma constante. Os jogadores são daqui brutalmente recrutados. Alguns participantes voluntariam-se, esses assumem que o seu grande objectivo é representarem da melhor forma possível o seu distrito. Treinam desde cedo. A economia dos distritos é profundamente planificada e controlada pela cidade. Numa citação do filme, o grande líder (da cidade) assume que os recursos provenientes dos distritos são fundamentais. Pelo meio, uma pequena rebelião num dos distritos é prontamente apaziguada pelas forças da cidade.
São os meus dois centavos. O meu bitaite. Outros verão no filme uma crítica a reality shows. Um hino à força do amor. Uma réplica da facilidade com que a moralidade de cada um é corrompida em função situações extremas, de vida ou morte. Mas não me lixem. (Sem conhecer os restantes livros/filme, vou procurar fazê-lo,) Para mim o Hunger Games tem por alí laivos de retrato de uma forma de organização imperialista. Da fase superior do capitalismo, diria o camarada Lenine. A fome de alguns distritos é a fonte de bem-estar e liberdade de outra cidade. Como se fosse um jogo.
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