domingo, 8 de março de 2009

Dia da Mulher


No seu quarto, tinha três fotografias: uma dos dois filhos, quando ainda eles não conheciam a palavra mãe, uma do seu casamento, quando já a chamavam mãe e outra da sua juventude, quando apenas sonhava ser mãe (e fora tão curto o caminho do sonho à realidade). Não eram analgésicos ou falinhas-mansas que lhe curavam os hematomas: eram aquelas fotografias. Eram elas que, apesar de serem duas sépia e uma a preto e branco, a acompanhavam e davam alguma cor aos longos minutos funestos do seu penoso envelhecer.
Há anos que o marido dava o corpo ao manifesto, numa luta das 9h ás 23h, para por comida na mesa. Nunca desconfiara do seu árduo horário, porque sempre ouvia e acreditava na falsa inocência de quem já não a achava atraente:
Onde estiveste até tão tarde?
A trabalhar! E para de chorar.
E parava sim, porque com aquela resposta sóbria, a noite iria ser meiga.
(Os lábios cortados saravam com palavras de arrependimento. As nódoas negras aclaravam com promessa de um futuro melhor. O sangue limpava-se com águas de amor falacioso).
A manhã começava com um beijo de bom dia aos filhos. Na realidade começava com gritos de “dá-me o nó na gravata” ou “vai fazer o pequeno-almoço”, mas isso, dizia ela, ainda fazia parte da noite. Então, para não gastar logo cedo uma ou outra lágrima, convenceu-se que a manhã começava com um beijo nos filhos. Por volta das dez, já estava sozinha. Salvo-seja. Tinha as fotografias e os afazeres domésticos. Não tinha amigas, não precisava delas. Estava farta que toda a gente lhe dissesse que o divórcio não era um casamento com o diabo, mas quiçá, apenas a fuga dele. Amava o marido. E justificava todos os seus comportamentos pela pressão no trabalho ou, a maior parte das vezes, pela sua ineficácia como esposa dedicada. Atormentava-a o facto de julgar não ser uma mulher exima e não conseguia libertar-se do rótulo de desempregada que tanto a fazia dependente. Então, chegava a respirar um certo ar de merecimento quando o marido a beijava com a fivela do cinto.
(E logo as nódoas negras aclaravam com promessas de um futuro melhor)
Dos filhos, recebia a meiguice. E mantinha-se viva por eles. Por eles, e pelas fotografias.
Um dia ou outro saía à rua sem o intuito de fazer compras. Ía apenas passear, tirar tempo para si. Carregava energias que logo esmoreciam aquando o seu regresso a casa: Recebiam-na à noite os carinhos do marido, longe dos filhos e das fotografias. E ela defendia-se:
Não sou uma puta, não tenho mais ninguém. Fui só passear. Mas tens razão, pequei, subjuguei-me ao descanso. Mereço.
(E logo os lábios cortados saravam com palavras de arrependimento)
Vivia no fio da navalha. Não sabia para que lado pender a sua vontade: Gostava de ver o marido chegar longe de cedo ou preferia recebe-lo ás cinco? Não escolhia porque não tinha tempo de se habituar a uma das opções. Três dias o horário era um e mais uns quantos dias era outro. Não era um horário certo, e não estranhava: Ele é trabalhador dedicado e por certo o patrão reconhece isso em regulares dispensas de carga laboral.
Quando não chegava tarde, trazia sede nas palavras e nos gestos. Corria bem quando ela compactuava nos seus mais ou menos hediondos apetites sexuais. Magoava-se quando retorquía um “não me apetece agora”.
(E logo o sangue se limpava com águas de amor falacioso)
Nem sempre estava acordada quando não dormia. Às vezes, apenas olhava as fotografias.
Gosto da felicidade dos rostos nas fotografias. Imortalizam-se num tempo que, embora saibamos que não volta mais, não deixam de lembrar que se um dia existiu não é impossível tornar a sentir toques do seu regresso.
Acho que ela também gostava.
E acho que esse, fora o seu maior
erro.

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