sábado, 30 de novembro de 2013

O exercício de sempre...

O branco pálido dos rostos da plateia dava o mote ao acontecimento: o Inverno tinha chegado.  O pretexto para escarafunchar os roupeiros à procura da roupa mais quente também. Tinha chegado o frio cortante, cortante porque é seco, mas também porque só quando é seco é que corta realmente, e custa mais a aturar. Acho que é assim, no geral, não é só com o frio...

O café era o de sempre, naquele dia da semana de sempre, com as pessoas de sempre, mas já um pouco para lá da hora de sempre. Invariavelmente, havia sempre alguém mais atrasado, e não deu para começar às horas de sempre. Mas lá se começou, porque há sempre um começo, embora não se saiba sempre qual é que vai ser...

A Mariana estava fora no outro frio que faz lá em Londres. Os Tiagos orquestravam outro daqueles planos megalómanos para viverem a melhor aventura de sempre. A faculdade deles podia esperar, porque há sempre tempo... A Joana e o Ricardo conversavam prazerosamente, como sempre. Discutiam o café de sempre e reflectiam sobre os acontecimentos da semana, como sempre. A Joana queria ficar dedicada às suas causas, mudando o mundo daqueles que com ela se cruzam todos os dias, dando voz aos seus sonhos, mas também uma melhor voz àqueles que com ela sonham. Ricardo matutava no futuro, e depois no passado, e depois intercalava um com o outro, e ás vezes lá dava umas voltas no presente, como sempre. A conversa estava animada, aquecida pelo café escaldado na chávena, mas também por aquele aconchego que dá uma mesa cheia dos amigos de sempre.

Mas decidiu-se exercitar o sempre...

- Joana: Ás vezes penso que estou mesmo a ficar velha. Continuamos a vir aqui e os anos passam, e eu sinto-os realmente a passar. As coisas acontecem tão rapidamente, que parece que foi ontem que nos conhecemos todos...

- Ricardo: Eh, eu nem sequer me lembro o que jantei ontem...

- Joana: E daquelas férias na Zambujeira, lembras-te?

- Ricardo: Férias?
- Joana: Parece que foi ontem... Depois fomos para o Crato para casa da Mariana e estava aquele bafo insuportável... Estava lá o pessoal todo. Foi brutal...

- Ricardo: Pois...

- Joana: Nem parece que já estamos no Inverno outra vez... Agora, o que sabe mesmo bem, chegar a casa e comer aquela sopa da minha mãe... Ah, é verdade. Falei com a Mariana há duas semanas, ela perguntou se já sabes como vai ser a tua vida daqui para a frente?! Já nem me lembrava de te perguntar, parece que foi ontem que falámos sobre isso...

- Ricardo: Pois ainda não sei... Está tudo indefinido, mas é altura de começar a pensar em decisões.

- Joana: Lá estás tu e os teus mistérios. Bom, olha lá, e a Belinda? Tens sabido alguma coisa dela ultimamente? Parece que foi ontem que foi para a Austrália, ela é que está como quer... E nós aqui...

- Ricardo: Não sei, parece que passou tão pouco desde que ela foi... Tenho saudades dela, mas eu acho que ela fica bem com o Alex.

- Joana: O quê? Estás parvo? Já passaram 2 anos... O tempo tem passado a correr. Parece que foi ontem que saí da faculdade...

- Ricardo: A correr? Olha, os meus estão a fazer uma corrida contra o devagar, e estão a ganhar...

- Joana: Só podes estar a gozar? Já te disse, parece que foi ontem que entrei na faculdade, e olha agora para mim, que já estou a terminar a tese e a estagiar...

- Ricardo: Pois, eu não acho isso... Eu olho para trás, e vejo mudança.

- Joana: Pois...

- Ricardo: E olho para a frente e também... Essa é a graça disto tudo... Mudou tudo e o que eu dava como garantido para sempre, hoje dá-me vontade de rir... Não sei, talvez crescer seja isto...

- Joana: Pois não sei, lá estás tu com as tuas coisas...

- Ricardo: Bom, deixa lá... Que se lixe, ao menos ainda continuamos a ter o nosso cafezito às quartas...

E a conversa voltou ao de sempre... Mas o de sempre é que não voltou à conversa, nem a eles. Pelo menos por agora...


E os teus últimos 5 anos? Secos?

Da natureza humana (I)

Existem essencialmente três formas de entretenimento numa ponte aérea: reparar nas pessoas, ler a revista de cortesia da companhia ou assistir televisão. A primeira, pelo prazer que proporciona, merece uma análise separada. A segunda costuma ser simpática porque vem cheia de fotografias bonitas, mas não dura mais de 2 horas por mês. A última tende em ser menos interessante do que tentar dormir, mas hoje não foi.

O documentário falava sobre o problema da fome e do desperdício de alimentos no mundo. Embora este seja um tema que me parece relativamente conhecido (pelo menos no bom senso dos comuns) fiquei um pouco pensativo sobre a dimensão do assunto que era retratado de forma bastante emocional. Os números são grandes. Eu lembro-me que são grandes, mas não me lembro dos números. Só de um: 7.6% da população brasileira passa fome ou tem problemas de subnutrição. A conta do martelo dá uns 15 milhões de pessoas. Eu disse que os números são grandes.

O documentário falava também de acções sociais que têm vindo a ser desenvolvidas em resposta a este problema. As comuns os comuns já sabem. Interessei-me pela forma como empresários de distribuição e retalho alimentar realizam doações de alimentos ‘sem valor comercial’ mas com ‘valor nutritivo’. Aquela banana pretinha ou a cenoura partida ao meio que não vão fazer mal. Parece lógico. E mais do que isso, parecia fazer diferença para as pessoas atrás da câmara. Metade da cenoura, apenas, parecia fazer diferença. Havia também uma escolinha sediada numa favela no Rio de Janeiro que ensinava as donas de casa da comunidade a cozinhar com as cascas (e outros ‘desperdícios’) de suas frutas e verduras. Primeiro ri-me, depois tocou o sino.

O negócio criou-se imediatamente. Chama-se ‘Skin’, e somos uma cadeira multinacional de restaurantes éticos gourmet. Nascemos em 2013 da iniciativa de nossos fundadores e associados em combater a fome e a subnutrição no mundo. De nosso trabalho voluntário junto às comunidades mais desfavorecidas em toda a América do Sul, aprendemos o segredo de cozinhar a partir de ingredientes tipicamente considerados como ‘desperdício’, que são o foco de nossa arte. E como sabem, as cascas de frutas e vegetais concentram a maior parte das vitaminas e nutrientes dos ditos, apelando assim a uma população cada vez mais preocupada com a qualidade da sua alimentação.

A aceitação do público tem sido espantosa. Começando com apenas 3 pequenas unidades na zona oeste da cidade, hoje estamos presentes em 14 países com mais de 150 restaurantes. O nosso modelo de negócio é baseado numa oferta tripartida que se complementa. Temos o ‘Skin du Mer’. Uma evolução do sushi tradicional: o nosso arroz é preparado com casca, importado do sudeste asiático e especialmente tratado para ficar com um toque crocante excepcional. Da Amazónia chegam  peixes exóticos que preparamos da forma incomum, servindo-nos essencialmente da cabeça do animal. Temaki de bochecha de Piranha, com o nosso registado Arroz de Laos temperado com raspas de limão e coberto com sementes de Pimentão amarelo é o preferido de nossos clientes.

A nossa proposta no ‘Skin du Terre’ é diferente. Trabalhamos com uma variedade de cafés orgânicos, cervejas artesanais e sides doces e salgados. Nossas potato skins são um fenómeno nos fins de tarde ensolarados de Lisboa, acompanhadas por nossa cerveja Checa não filtrada. O nosso brigadeiro de raspas de cenoura e casca de banana faz as delícias dos mais gulosos.

Por último, o ‘Skin Express’. A nossa marca para grandes superfícies comerciais que gradualmente tem ganho espaço na rotina das pessoas. Nossa tecnologia para a rápida confecção de quiches revolucionou o dicionário de fast-food. O cliente pode escolher de forma personalizada e única o recheio de sua quiche (cascas de maça, pêra ou outras frutas, raízes de salsa ou coentros, sementes de vegetais, aquelas folhas do caule da laranja que vêm agarradas, preparadas na chapa com torresmo de leitão, etc.), que será preparada em nosso forno vitesse em apenas 54 segundos. Uma opção rápida, diferente, saudável e saborosa.

É indiscutível que o planeta se rendeu à nossa Skin Cousine, fortemente pautada na visão humanitária de nossos fundadores. Hoje, o mundo inteiro só quer saber da casca da melancia. Dos olhos do robalo. Daqueles fiozinhos castanhos do coco seco. Das flores da batata. Tudo o resto ficou triste e obsoleto. Não existe nenhuma opção mais chic e ética do que a nossa.


Estamos com um enorme problema em descobrir o que fazer com a polpa de tantas frutas e vegetais. E claro, com o resto da Piranha.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O Cabaret

Não me esqueci que hoje é quinta. Mas como ela vai colar com a sexta, vou encavalitar na rubrica do Costa.

Deixo para o meio tempo um entretenimento de bom gosto. Esta música em particular tem o dom de remeter para um lugar qualquer que parece fantástico mas que desconheço como seja.

Talvez o título diga tudo.

Aqui: http://www.youtube.com/watch?v=h0Y56-4rxAg

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

um provérbio

Dei com um provérbio curioso. Dizia que 'viajar é a única coisa em que podemos gastar dinheiro e ficar mais ricos'. Nem fui eu que o encontrei, foi o provérbio a mim. Estava escrito numa página qualquer, em busca de um leitor, caí ao pé dele e apanhou-me. Aliás, nem sei se é um provérbio, mas é curioso.

Curioso porque assume uma definição específica de riqueza. Afirma que essa não depende do dinheiro. Depende das vivências, de lugares conhecidos e pessoas descobertas (ou vice-versa), da novidade e da aventura. Se viajar é isso, mudar coisas do pote da novidade para o pote das antiguidades o provérbio torna-se terminante: ser rico é coleccionar velharias.
Por outro lado dá a machadada final na eficiência dos mercados. Se realmente existir o lugar mágico onde oferta e procura se equilibram de forma eficiente, o preço da transacção será perfeito isto é, a minha compra será feita pelo valor que o produto intrinsecamente vale. O dinheiro que gasto é exactamente igual ao valor daquilo que agora adquiri: uma viagem. Não estou mais rico, nem mais pobre. O provérbio torna-se terminante: os mercados eficientes não existem.

Mas isto são graçolas mascaradas de coisa séria. Os provérbios são para ser levados de forma leviana. Foi isso que fiz quando há três ou quatro dias estava indeciso sobre que livro comprar. Na loja, carregava parvamente dois exemplares, tolhido por uma guerra entre prós e contras. Lembrei-me, com um acaso que não sei justificar, do 'viajar é a única coisa em que podemos gastar dinheiro e ficar mais ricos'. Comprei o Viagens e outras Viagens do António Tabucchi. Há quem diga que ler é viajar, e duvidando disso, juntei a tónica de decidir ler um livro sobre viagens. Mesmo que o sofá não ganhe asas, hei-de enriquecer um pouco, julguei.

Agora que as peças se juntam, apercebo-me daquilo que carregam os provérbios.
Se pensarmos muito neles, deixam de fazer sentido.
Se os usarmos de forma leviana, levam-nos por caminhos estranhos face àquilo que originalmente pretendiam enunciar.
Se os usarmos e o resultado não for agradável, nunca nos recordaremos do seu uso, não o iremos publicitar, o esquecimento ditará a sua sina.

E aqui estamos: acontece que o tal livro que comprei é bem bonito.

Da Série Ruby Tuesday (I) (or Music on Tuesdays): Introdução à Rúbrica e 5 a Seco - ...e Business Models (?!)

Ponto prévio um: não tive acesso ao meu computador pessoal ontem porque me esqueci dele no trabalho.

Ponto prévio dois: não deixa de ser irónico que tenha deixado atrasar um dia tendo em conta o post que estava preparado ontem (ver abaixo).

Música: um dos tópicos que propus a mim mesmo (ou a mim próprio, nunca sei) nesta nova vida d'A Mentira. O tópico geral, o nome e o tópico em particular vêm de um blog que sigo, o NewAppsBlog, que tem uma rúbrica chamada Brazilian Music on Fridays. Acrescentei o 'Da Série' e o '(I)' porque fazem parte desta casa. Ora, eu escrevo às terças pelo que não tenho a sexta nem o Friday Night, Saturday Morning (versão do/as Nouvelle Vague) ou o "Quarta-feira, sempre desce o pano" (do Chico Buarque).

Tinha músicas para vários dias da semana e em último caso podia passar a saltar o meu dia quando quisesse escrever sobre música e chamar à rúbrica de Yesterday (Beatles). Mas não, calhou-me a terça e há o Ruby Tuesday dos Rolling Stones. Calha bem.(Entretanto o post deslizou para quarta-feira, "isn't that ironic?")

Venho dar-vos a conhecer uma banda brasileira e bem recente, os 5aseco. Descobria-a, justamente, na tal rúbrica Brazilian Music on Fridays.

Eu que gosto de música brasileira em particular e MPB em geral gostei muito. As canções eram novas mas soaram-me familiares. É um sentimento muito bom. Segue a primeira, 'Feliz para cachorro'

Também achei interessante o seguinte: não cobram pelo album (chamar CD nesta altura do campeonato é estúpido). Os Radiohead há uns anos lançaram o In Rainbows (excelente!) grátis - uma pessoa pagava o que quisesse pelo download (incluindo zero). Os 5 a Seco optaram pela modalidade Pay with a Tweet, ou seja, um post no tweeter ou facebook (este post aqui no blog não conta).

baixe aqui as músicas do álbum "ao vivo no auditório do ibirapuera" gratuitamente. em troca, você só precisa postar ou tweetar sobre isso. clique aqui para fazer o download https://www.paywithatweet.com/pay/?id=7a7db44f4fc2f721d07f967620dafcd5

Ora, isto é muito interessante porque é sintoma de uma indústria em profunda mudança, nomeadamente, quanto ao modelo de negócio. Os CDs são tecnologia obsoleta, a pirataria é um dado incontornável, as ferramentas de produção e promoção estão acessíveis a quem faz música (o benefício de escala das editoras diluiu-se); as bandas ganham mais dinheiro promovendo-se no MySpace e indo a Londres no fim-de-semana para tocar num Bar do que vendendo umas poucas centenas de CDs. Daí a importância da promoção e do pay with a tweet. Acho que quem gosta de gestão e negócios adora modelos de negócio e destes game-changers. Dito isto, à parte dos Concertos, os 5 a Seco hão-de ganhar dinheiro com merchandising (Camisetas e DVDs) que também vendem no site http://loja.5aseco.com.br/.

(Business models e música brasileira cutting edge num mesmo post? Este post parece custom-made para os nossos Quem Foram de serviço!)

Mesmo sem postar ou fazer o download, podem ouvir o álbum em stream no site. Repito, recomendo. E segue outra, 'ou não.'

Esta reflete uma longa tradição da música brasileira de 'Xii, o mundo está péssimo' mas 'há praia, água de côco e mulheres' (não confundir com "novela, missa e gibi")

Espero que gostem!

PS: da próxima vez o título será mais curto.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

and now for something completely different (XI) - o Regresso

O Fernando escreveu em Julho de 2011 um post intitulado and now for something completely different (X) - o fim rematando uma série genial de escrita criativa.

Este fim da série and now for something completely different anunciado pelo Fernando era, mais uma vez, uma grande mentira. Aos 70 anos, eles estão de volta rijos como o aço:

"O regresso era esperado há anos e já se imaginava que ia ser uma tarefa difícil comprar bilhetes para a reunião dos cinco Monty Python, anunciada na semana passada. O que talvez não fosse de esperar era que os bilhetes voassem em menos de um minuto, mais precisamente 43,5 segundos. Foram já anunciadas mais quatro datas mas comprar bilhetes também já é uma tarefa quase impossível."

"Eles bem disseram na conferência de imprensa da semana passada que iam ficar ricos com este regresso. Eric Idle brincou com a situação e disse que voltariam aos palcos para “tentar pagar a hipoteca de Terry Jones”. Pois bem, como era de esperar, o espectáculo, marcado para o dia 1 de Julho de 2014, esgotou em segundos e pelo mesmo caminho foram as novas datas anunciadas: 2, 3, 4 e 5 de Julho. Depois disto, não será difícil pagar a hipoteca e ainda ganhar algum dinheiro. Eles bem disseram e nós bem sabíamos."

Acordar no deserto.


O chão fedia, o ar fedia, tudo estava extraordinariamente perto do insuportável. Até o Sol parecia estar tão perto que quase me chamuscava as pestanas dos olhos que começava a abrir. Ouvia-os ao longe, sabia que estavam uns metros à frente, mas não os via. O calor fazia a paisagem tremer, distorcendo dois vultos misturados com os animais que impregnavam o ar quente.

O primeiro sinal de que eram mesmo eles foi a voz de Maria. Ouvi aquela rouquidão suave de radialista muito ao de leve, secundada por um cuspir de palavras de José. Nenhuma semelhança se podia encontrar entre o cuidado de dicção de Maria, expressa na sua voz granulada do pó de todos os dias, e o grunhir do marido. Ele não falava, certamente, melhor do que muitos dos seus animais, tendo apenas a sorte de se exprimir – e mal – numa língua perceptível aos humanos, mas ela parecia entendê-lo sem problemas.

Era capaz de jurar que a via ali, com um vestido tão leve como o do seu casamento, provavelmente bege. Lembrava-se como se tivesse sido no dia anterior. Talvez fosse até momentaneamente branco, mas o pó tratar-se-ia de o enfeitar mais ao jeito do deserto. Não tinha mangas, nunca tinha mangas. Os seus airosos braços estariam bem mais à mostra do que as suas ainda mais airosas pernas. Cheirava a uma flor qualquer que não sabia identificar, mas que pouco mascarava o cheiro descarado do suor dele, que lhe ensopava a camisa velha aos quadrados. José seria certamente alérgico a qualquer outro tipo de camisas e padrões, visto não haver memória dele a usar algo de muito diferente.

O pó assentou um pouco e quase que lhe vi o batom, vermelho, que sempre pensei que ela usava. No casamento estava igual, naturalmente. Talvez a cor fosse natural, mas nunca a olhei dessa maneira. O batom era essencial em todas as minhas fantasias, todas elas terminavam com um dos cantos dos meus lábios pintados de vermelho. Não sonhava muito alto, bastava um beijo de raspão, um cumprimentar de esguelha. Nem queria grandes momentos de amor, só este pequeno toque. Mas nem isso tinha. Era mais provável esse contorno de lábios estar desenhado algures no bigode de José, pintando-lhe os restos da sandes de queijo e pó que come religiosamente ao almoço e o palito que sempre mastiga à sobremesa.

Foi no casamento deles que me apaixonei por ela, foi no casamento deles que fantasiei com ela, entre brindes de tequila e vivas aos noivos. À medida que eles me subiam à cabeça, traziam a raiva escondida e afogada bem no fundo de algum órgão. Olhava-lhe o fato barato e ria-me sozinho. Via-lhe as botas, tão impróprias ali como gelados no Alasca, e ria-me mais alto e mais sozinho. Cheirava-lhe o fedor que emanava a cada passagem do número de dança que tão pouco entusiasmado fazia e ria-me ainda mais, depois de um primeiro momento em que fazia por revelar algo como uma expressão de nojo puro. E a tequila ia desaparecendo dos meus copos ao mesmo ritmo a que as pessoas iam fugindo da minha mesa. Reparava-lhe por fim na mulher, e chorava. Não chorei muito, antes de adormecer com toda a gente a olhar-me de cada vez mais longe.

Sentia-me agora perdido e a desfalecer. Queria água, queria que tapassem o Sol com uma pala gigante, só por uns minutos, até me recompor. Tinha os sapatos quase brancos. Cuspi-lhes as últimas pingas de saliva e esfreguei-os nas pernas opostas. Pintei-os de preto. Também sentia o pescoço apertado, pela gravata que reparava estar a usar. E foi no dia a seguir ao casamento que me desapaixonei por ela, entre vómitos secos e promessas de sobriedade eterna.


Pode ser Pepsi?

Estamos de parabéns porque vamos ao Mundial 2014 no Brasil (Costas, há casa para mim em Junho?). O Fernando e o André Costa já escreveram aqui, e bem, sobre aquela granda jogaça de 3ª feira, em que o maior enfiou 3 papos-secos dentro da baliza sueca, como só ele sabe fazer.

Mas não é sobre isso que eu estou a escrever hoje. É sobre um outro assunto. Um assunto que marcou esta semana e que está indiretamente relacionado com o jogo: A Pepsi Sueca (e isto é importante realçar porque a malta tem sempre ideia em confundir as coisas.. não é a Pepsi Portugal nem a Pepsi Internacional - que curiosamente tem Messi como um dos seus rostos publicitários) publicou 3 imagens na pag do facebook em que mostra um boneco vestido com as cores nacionais amarrado numa linha de comboio, outra repleto de alfinetes vodu e outra esmagado por uma lata Pepsi.


A Pepsi Portugal, através da sua pag facebook, pediu desculpas ao Ronaldo e aos Portugueses. Mas não foi suficiente pois logo a seguir à publicação das fotos apareceu logo uma página de indignados a boicotar a Pepsi: Nunca mais vou beber Pepsi, que já tem quase 200 mil likes, com o seguinte mote: «Se és português e tens orgulho no teu País, nunca mais bebas Pepsi e faz "Gosto" nesta página!». O assunto tornou-se viral e não tardou a aparecerem 1) montagens, feitas no paint, a associarem CR, Messi, Pepsi, Coca-cola, Blater, Zlatan, etc. 2) vídeos no youtube de tugas a partirem arcas da Pepsi ou de telefonemas em tom de brincadeira para a Pepsi Internacional, 3) noticias sobre troca de fornecedores, como no caso da TAP que respondeu via facebook a uma cliente.

Não tardou também a aparecerem os peritos a comentar. "A imagem da marca fica gravemente afetada. O pedido de desculpas dado nas redes sociais, sendo correta, é tarde de mais." dizia Luís Pereira Santos, da McCANN Portugal. "Basta olhar para os 63 milhões de fans que o Cristiano Ronaldo tem no Facebook e os 23 milhões da Pepsi para fazer as contas de quem terá ficado a perder e, claro, perceber que o problema da marca não será apenas em Portugal" dizia Tomás Froes, da MSTF Partners.

Surge então a altura de comentar o sucedido:
Em 1º lugar sobre o conteúdo: ao contrário do Henrique Raposo, não vi nenhuma "campanha inteligente".. vi sim uma demonstração de muito mau-gosto.
Em 2º lugar sobre o movimento anti-pepsi: concordo com a "indignação patrioteira e patética", com o "vejam lá se arranjam uma vida, vejam lá se ganham estofo e capacidade de encaixe, no fundo, vejam lá se crescem" e com o "este é apenas o último episódio de um fenómeno cada vez mais grave: a intolerância crescente das redes sociais". Mas o tuga é assim: Fala-se muito do patriotismo e do orgulho português, mas no final de contas, temos uma memória tão curta quanto a nossa capacidade política. Por aqui, as feridas fecham-se rápido, muito rápido até. E quando se trata de um movimento que nasce no facebook, mais ainda: nasce uma veia revolucionária dentro de cada um alimentando o sonho de querer mudar alguma coisa.
Em último, sobre as consequências para a marca: Em Portugal, é a Coca-Cola que domina o mercado e a Pepsi nunca vai conseguir inverter a sua posição de follower. Quando o Tuga for a um café, vai continuar a pedir Coca-cola, o empregado a perguntar-lhe Pode ser Pepsi?, o Tuga durante uns tempos vai dizer que não, mas como a memória é curta não vai tardar a dizer que sim.

Concluindo numa frase: Esta campanha foi uma palermice que correu mal mas os portugueses esquecem rápido.

sábado, 23 de novembro de 2013

Porque todos os homens deviam ser JFKennedy

Ok, pronto, é radical eu sei, deixemos liberdades a alguns para serem quem são…
Foi há um dia que se celebrou o aniversário da morte deste senhor. Aposto que quando se celebrar o aniversário propriamente dito ninguém se lembra, mas há que seguir a tradição mórbido trágica dos media porque afinal um aniversário em si não tem graça nenhuma!, mas aqueles polvilhados de sangue a gente gosta!
JFK carrega aos ombros aquilo que a partir da sua era, mais do que o sonho americano, passou a ser um “perfect portrait” de família. E é irónico como, no fim, nada houve de perfeito.

O carisma de JFK levou-o a ser mais do que um presidente, foi o símbolo de presidência americana. A máquina de corrupção estava por trás mas isso, ninguém via.
O alento da nação vem de uma bela primeira-dama e de um bom par de Ray-ban numas férias à beira mar. Obama não lhe chegará nunca aos calcalhares, será sempre um substituto, como se depois de uma grande festa regada de champanhe e Bourbon os americanos se tivessem que contentar com uma after-party nos fundos. Bem, menos talvez, mas a escolha será sempre óbvia.
JFK é o retrato da nação perfeita, da família perfeita, do homem que deu a cara pela América e que a carimbou com ela. Incontornável.

Quem discordar pode ir pregar para a casa dos Onassis.

O facto interessante é que a política renasceu aqui como um jogo de imagem. O povo ama aquilo que vê, não a política. Entre os vestidos, as belas casas de campo, os tuxedo e os flutes ninguém se importa, é a vida americana no sei auge e, afinal, é disso que vive a América, de um poder tão económico quanto de imagem. Vejam-me, adorem-me.
Ah, e depois claro temos a célebre “forgive your enemies but never forget their names.” Acho que a américa também continua a gostar bastante desta…

Para o homem que ainda não percebeu que deve ser JFK tente ter uma mulher como a Jackie, levar os USA por um cordel e chegar a casa com a Marylin a cantar happy birthday mr president  ao ouvido. 


Parte nº2 ou como ser um bêbedo sem classe na Suécia:
Ah! Os povos nórdicos! Uma capacidade de organização e educação excepcional mas uma capacidade de beber um só copo irrisória!
A sensação de entrar num supermercado sueco exclusivamente destinado à venda de álcool assemelha-se um pouco a ir a uma consulta de psiquiatria: vai tudo ao mesmo mas é melhor evitar a troca de olhares não vá fulano reconhecer-me no dia seguinte. Mas ali é quase impossível porque os sacos plásticos para levar o álcool são de “cor especial”, quer isto dizer de um azul que é impossível ignorar na rua. 
Quando alguém passa com um saco daqueles já sabem, hoje à festa!
Mas o escândalo está no facto de este tipo de supermercado fechar sábado a partir das 15h e domingo o dia todo. O governo parece desesperado em controlar um povo que pura e simplesmente não sabe beber por convívio, ou é para acordar as sete da manha meio nu em casa de desconhecidos barrado de manteiga de amendoim ou então não vale a pena!

E em verdade não há maneira de resolver o problema do supermercado fechado. Porque para os nossos amigos suecos não há o “compra e fica de reserva”, se há de reserva mais vale é beber!


E agora por falar nisso, deixa-me lá ver se tenho aqui algum…

Este é o Milésimo Post da Mentira

Não quero roubar o teu protagonismo Kay. Mais ou menos, vá. Queria apenas deixar, no milésimo post d'A Mentira, uma mensagem de futuro.

Não desperdicem nem uma gota do vosso talento.

Deus fica muito chateado.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O verdadeiro herói (usa quase sempre capa)

Nota prévia: Peço desculpa por desapontar aqueles que estavam à espera do óbvio. Não, não, este não é um post sobre as proezas futebolísticas do Cristiano Ronaldo contra a Suécia.

Hoje vou tentar escrever sobre Heróis (pode ser com maiúscula, não pode? Eu vou escrever com maiúscula), de um em especial. A história deste Herói é tão esmagadora, que eu nem sinto capacidade de abraçar o desafio de forma suficientemente épica para ter o direito de escrever sobre ele. Mas já lá vamos, comecemos por dar algumas definições genéricas do espécie, o Herói:

"1. Figura arquetípica que reúne em si os atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica;
2. Aquele que se distingue por seu valor ou por suas acções extraordinárias, principalmente por feitos brilhantes durante a guerra;
3. Principal personagem de uma obra literária ou cinematográfica;
4. Personagem principal de uma aventura, de um acontecimento;
5. Individuo que se destaca por um ato extraordinário de coragem, valentia, força de carácter, ou outra qualidade considerada notável."

Terminadas as definições dos primeiros 4 ou 5 links do Google para o tema,  qualquer leitor sem muito enviesamento futebolístico irá concordar que o Ronaldo só irá ser digno de um post, se ganharmos a Copa aqui no Maracanã no próximo Verão (Português) / Inverno (Carioca), levantando a taça com a bandeira de Portugal às costas, como se de uma capa se tratasse. Desculpem a sinceridade quase obsessiva, mas para mim um super herói tem que ter uma capa (não confundir com cauda).

Como aprendemos nas histórias das nossas infâncias e na maioria dos filmes lá de Hollywood que dão por aí, os heróis são uma espécie que habita entre nós. Eles são desconhecidos, na maioria das vezes são irreconhecíveis, de vários tamanhos, idades, estratos sociais, graus de escolaridade, com hobbys diferentes, etc. Ás vezes, eles são até da família. Normalmente, aparecem de repente, sem avisar, ao ritmo das partidas e dos desafios que a vida lhes coloca.  Trazem consigo toda a força e coragem que existe no mundo (que só eles sabem onde ela existe), que leva a pensar que eles sempre estiveram preparados para essas derradeiras batalhas que travam com tanta convicção e fulgor. A sério, eles trazem tudo isso. E uma capa.

O Herói desta história, chama-se Miles Scott (não confundir com o Davis, que não usava capa, mas cumpria bem os requisitos de acima supracitados). Tem 5 anos, venceu leucemia. Mas mais que isso, foi capaz de mexer com uma cidade inteira (créditos para a Make-A-Wish Foundation), que se transformou por 1 dia num capítulo de banda desenhada para ajudar este pequeno herói a recuperar os anos da ainda sua curta infância perdida, e dar toda a força para a batalha final. Ah, a cidade foi São Francisco na Califórnia, EUA. Podem ler e ver tudo aqui, que não há muito que eu possa comentar, que vá acrescentar alguma coisa: http://www.sfchronicle.com/batkid/#/0

Miles Scott a.k.a The Batkid é uma das histórias mais fantásticas que eu já vi. Mas vi outra que me tocou de perto... Ninguém conseguia ver quão heróico tinha sido o feito, ou tão pouco se usava capa, mas eu sim, porque esse herói mora lá em casa. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Esse lugar é uma ilha

Se tu entrasses naquele barco irias ficar deslumbrada.

O degrau é um pouco alto e a água cor de céu distrai o pé. Cuidado para não escorregares. Sentas e sentes o vento que não é vento porque o marinheiro vai com pressa de chegar.

Tu pensas

que não tens pressa nenhuma de chegar. O bom de navegar é que não existe um caminho. Existe uma paisagem que é a terra e um horizonte que é para lá. O destino fica no meio porque é uma ilha. Olhas para a paisagem e

Tu pensas

puta que pariu, que não tens pressa nenhuma de chegar. Vais pedir um rum no bar porque sentes o sol a raiar na testa. É boa ideia beber o reflexo do degradê da paisagem, já que o teu tempo passa sem vontade de passar. Olhas para o marinheiro e

Tu pensas o que ele pensaria.

Ele pensaria

que a paisagem é a bombordo e o horizonte a estibordo. O destino está lá ao fundo, vês? Enquanto pede para servirem mais um rum ao turista cor-de-rosa. Há anos que não repara na beleza do caminho que não existe porque olha para ele todos os dias. Da mesma forma que tu não reparas no azul do céu quando caminhas de manhã para a tua cadeirinha do escritório. E como o marinheiro acordou cedo

Ele pensaria

quantas milhas faltam para o almoço, e se a direcção do vento pode ajudar a empurrar a carcaça. Da mesma forma que tu pensas no primeiro café cigarro da manhã só de avistar a cadeirinha ao fundo da sala. A âncora é lançada e faz aquele barulho cinematográfico das correntes a esfregar na proa. Tu sabes bem. Os cor-de-rosa voam para a areia branca farinha porque sentem o cheiro de bichos do mar no carvão. Tu adoras quase-tudo no carvão então voas também. O marinheiro não, porque

Ele pensaria

que trincar mais um peixe mais um dia seria mais uma dor no órgão que fica mais abaixo do coração, que é o estômago. Da mesma forma que tu pensas no arroz lá da cantina que te cola os dentes uns nos outros e te rouba todas as orelhas das caixas de aspirina, porque os palitos teimam em desaparecer. Mas tu devoras aquela lagosta de forma heróica. Até os cornos, que picam nos dedos. Pedes mais um rum para celebrar e

Tu pensas

que exactamente ali está óptimo. Podias enterrar a cadeirinha na areia branca farinha e servir rum com gelo para turistas almoçados o resto dos teus dias. Duas preocupações apenas: rum, e gelo. Depois há a questão da dosagem. Mais fácil que Excel. E tens a paisagem para devorar. Ah, e copos. Também não podem faltar copos. Merda! Chutaram-te abordo e sentes novamente o vento que não é o vento de quem navega. Se agora é ao contrário

Tu pensas

que a paisagem está para lá e acertas. Mas agora vai perdendo a graça. Eu acho que algumas coisas perdem graça quando vistas de trás para a frente, tais como paisagens, filmes, livros ou músicas. Ou então és tu que perdes graça quando voltas de um lugar onde querias ter ficado. Sabes lá, e lá reparas no sorriso agrafado no canto da boca do marinheiro. E então percebes que esse é o sorriso

De quem sabe

que o caminho que não existe é o mesmo que leva e retorna, turistas e marinheiros, para um lugar onde nem todos querem ficar.


Esse lugar é uma ilha.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

uma fotografia

Escrevo este pedaço de texto antes dum jogo de futebol importante. Suécia e Portugal vão opor-se para decidir que equipa estará presente no mundial do Brasil, e seria agora fácil adivinhar os rumos deste conversa. As mentes afectas ao mundo desportivo estarão a imaginar uma crónica futebolística, uma dissertação acerca da necessidade de um Patrício moralizado ou um Ronaldo igual a si mesmo. Os mais interessados por política internacional poderiam imaginar uma discussão acerca do fervor nacionalista latente, do jeito com que os campeonatos de selecções alinham as agulhas patrióticas, da mesma forma que em formato violento o fizeram as guerras dos séculos passados. Talvez haja ainda quem se enamore por jornalismo cor-de-rosa, e nessas cabeças se imagine um post de manifesta indignação por faltarem entrevistas ao Figo e companheira sueca Helen, a indagar se a emoção do futebol aliada ao patriotismo supracitado têm capacidade sísmica para abanar um lar.

Apesar de gostar de tudo isso – futebol, política, do Figo e da Helen – não entendo nada dos seus meandros.

Vou por isso utilizar este espaço para tirar uma fotografia. Daqui a pouco mais de uma hora, saberei o resultado do jogo. Agora resta-me a especulação e a incerteza. Com estas palavras imortaliza-se a dúvida. Quando amanhã copiar e colar este texto no espaço devido, vou lembrar-me da emoção com que aguardo o momento e das duas uma: ou rio da patetice de tentar guardar para sempre a triste incerteza sobre um momento que afinal se revelou feliz, ou vou tentar por tudo recordar a felicidade da dúvida acerca de um desfecho desgostoso. Tal como uma fotografia que é necessariamente incompleta no instante em que se tira, ganhando significado à medida que avança a história dos objectos que lhe dão cor. Como efeito paralelo, sei que pela primeira vez escrevo algo de cariz actual sabendo que será publicado como algo desactualizado. Serve isto então para medir a curta distância entre a notícia e a história. Sei também que, Figo, se me ouves, obriga a Helen a fazer o mesmo, tirar uma fotografia ou deixar por escrito e assinado todas as baboseiras mentirosas que são fruta destas épocas

- Não, claro que vamos viver o jogo de forma saudável, não haverá retaliações, que ganhe o melhor, desportivismo acima de tudo,

acredita, não há sexo se Portugal for apurado.

Vou embora. O jogo vai começar.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

To Bite the Bullet (or Bite the Dust)

bite |bīt|verb ( past bit |bit|past part. bitten |ˈbitn|) [ intrans. ]
(…)

PHRASES
(…)
bite the bullet decide to do something difficult or unpleasant that onehas been putting off or hesitating over. [ORIGIN: from the old customof giving wounded soldiers a bullet to bite on when undergoing surgery without anesthetic.]

bite the dust informal be killed and the bad guys bite the dust with lead in their bellies. • figurative failcome to an end she hoped the new program wouldnot bite the dust for lack of funding.

A primeira expressão é de Kipling, a segunda é conhecida pela música dos Queen (e de um certo desenho animado que dava na TV quando eu era pequeno, acho que era do Hulk Hogan, mas por favor verifiquem no Google). Gosto muito da expressão e do seu significado. Aparentemente, a expressão teum um uso especial em filosofia, significando a capacidade de aceitar as consequências daquilo que acreditamos. Porque tenho o infortúnio de pertencer a esta geração em que o inglês always comes in handy, bite the bullet é o mesmo que embrace the consequences, mesmo as más, sobretudo as más.

Tenho usado o que nela há de útil nas últimas semanas, para o 'bem' e para o 'mal'.

Para o 'bem' — para efeitos humorísticos:
-Tenho de ligar os bicos do fogão com um fósforo. Nada mais fácil. Porém, o meu primo pergunta se eu preciso de ajuda (ele não sabe quão simples é a minha tarefa). Ao invés de recusar, aceito a ajuda. O momento foi embaraçoso quando ele percebeu o quão inútil foi a sua ajuda — o quão fácil era para mim a tarefa que tinha em mãos. But I bit the bullet e aceitei a ajuda.

(É como a mulher que está a estacionar o carro com dificuldade e o homem que está atrás pergunta enervado: é preciso eu ir aí fazer por si? Sim, é. A mulher sai do carro, entrega as chaves, e ele é obrigado a aceitar. It's funny.)

Para o 'mal' — para efeitos de compaixão:
-A minha tia lembrou-se dos tempos em que passávamos férias juntos no Algarve. Foram ótimas ótimas férias, dos meus 10 aos meus 14 anos. Estava saudosista. Era fácil minimizar a coisa; dizer que não valia a pena pensar nisso; que os tempos também são bons agora. (Agir na defensiva.) Mas não. Porque ando a pensar nisso de bite the bullet, aceitei ficar triste. Não quis minimizar. Aqueles tempos também significaram muito para mim. São tempos que não voltam. É melhor a minha tia saber que para mim também significou tanto quanto para ela; não podia fingir e desviar o olhar. Aceitar a bala, morder a bala e ficar triste. E assim fiz.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Ser ou não ser uma bailarina, eis a questão.


Antes de mais, e eu sei que não ganhei nenhum Oscar, queria agradecer ao Felipe, um velho amigo de quem a vida me foi afastando e que me convidou para vir para aqui, para perto dele, escrever. Depois, ao Felipe e ao Fernando, em conjunto, por escreverem como escrevem. Sempre li A Mentira, fui comentando alguns posts a espaços, e pouco mais. Agora, vou começar a minha participação por aqui falando-vos de um filme. Frances Ha, um filme recente, a preto e branco, é o escolhido.

O filme gira à volta de uma jovem, Frances, que quer ser bailarina em Nova Iorque. Vive com uma amiga, como se fossem "um casal de lésbicas, mas sem sexo", sendo elas "a mesma pessoa, com cabelos diferentes". Frances tem vinte e sete anos, mas "parece mais velha, mas menos madura, é estranho". Tem um problema (ou vários, mas comecemos por aqui): não sabe realmente dançar. E passa a ter outro quando a melhor amiga sai de casa, e ela fica sem talento e sem tecto. Vai viver com dois jovens artistas judeus, portanto ricos e de boas famílias (só os judeus ricos podem ter a ambição de ser artistas judeus), que partilham do seu humor depressivo. Também daí tem de sair, quando o sonho de ser bailarina profissional começa a ruir.

Frances é uma pessoa boa, mas a quem o mundo não parece interessado em recompensar, tirando-lhe as coisas de que gosta do caminho. Não é pródiga em amigos (e os que tem não são os melhores do mundo), é "undatable" e "alta demais para casar". É esquisita e desengonçada e tem tudo menos a subtileza de uma bailarina. É caótica e desarrumada, no quarto como nas ideias. Come de boca aberta, corre de maneira estranha, e consegue ser adorável a fazê-lo. Anda perdida durante o filme todo, perdida entre amizades e trabalhos. Perdida no presente, perdida sobre o que quer no futuro. Perdida como milhares de jovens em Portugal, que quando terminam a sua infância, ou a sua juventude, se preferirem, se perdem num infinito de possibilidades daquilo que a vida pode ser. Quando a opção sobre o rumo da vida lhes cai nas mãos, a maioria não sabe o que quer. Uns querem ser bailarinas e têm tanto jeito e sucesso como a Frances. Outros querem ser bailarinas e não têm a coragem da Frances, e acabam como advogados ou economistas, geralmente com um sucesso muito moderado. Outros, poucos, querem ser bailarinas e tornam-se bailarinas. Para estes o mundo é bom, mas geralmente é só para estes.

É impossível não nos lembrarmos de Woody Allen ao ver o filme, e isto é um elogio. No fundo, é um grande filme, de um grande realizador e protagonizado por uma grande actriz, sobre as dificuldades de uma jovem em ajustar aquilo que ela quer àquilo que o mundo lhe pode dar. Um filme sobre as pessoas de carne e osso e sobre um período crítico (umas vezes de sonho, outras vezes brutal) na vida de uma pessoa. Sobre o período em que alguém se torna, realmente, uma pessoa a sério, sem ajudas de pais nem mães (ou pelo menos é assim que seria suposto ser). Sobre o momento em que se abrem as portas gaiola, e se pode voar para onde quiser, ou ficar no mesmo sítio. Se gostam de filmes sem efeitos especiais ou tiros e mortes, deliciem-se com este filme. Caso contrário, não vale a pena perderem o pouquíssimo tempo que o filme dura (menos de uma hora e meia de um filme em que não há uma única cena a mais) e vejam o Thor, que não parece mau.



Nota: Eu, como a Frances, sou um espírito um bocado perdido entre sonhos e a realidade. Não vos obrigo, mas se quiserem podem ler-me também aqui e aqui, em registos bem diferentes.