segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

uma opinião sobre as facturas da sorte

Dez euros em facturas vão dar direito a ter um cupão da sorte, fala-se por estes dias. E se a sorte bater mesmo à porta, trará com ela a felicidade de ganhar um carro de gama alta. Dez milhões de euros são o total deste investimento público.

Li duas críticas que parecem bastante razoáveis. Em primeiro lugar, aponta-se o dedo à medida por ser profundamente desigual na forma como trata ricos e pobres: quem possui mais, mais gasta; quem mais gasta, mais probabilidade tem de ganhar o carro. Enfim, não serão surpresa as propostas deste governo que se pautem pelo fomentar da desigualdade social. Em segundo lugar, o facto de serem oferecidos carros de gama alta, dada a sua natureza poluente, não é um sinal carinhoso para o ambiente.

Passando uma vista de olhos pelo decreto de lei que propõe esta medida, há outra coisa que me parece engraçado destacar. Lê-se que “a factura da sorte tem por finalidade valorizar e premiar a cidadania fiscal dos contribuintes no combate à economia paralela”. Será?

Um velhinho estudo de 1970 por Richard Titmuss, tão badalado na área da economia comportamental, faz-nos pensar acerca da cidadania e dos efeitos dos incentivos. Nesse estudo, o autor montou um cenário experimental em que os participantes foram colocados numa de duas situações: ou lhes era inquirido se queriam doar sangue livremente ou se queriam doar sangue a troco de um incentivo monetário. Estranhamente, quando a recompensa monetária é introduzida, as pessoas tenderam a doar bem menos. Doar sangue tem um valor enorme, humano, moral, cívico. Um valor que não pode ser coberto por nenhum prémio ou estímulo positivo. Quando é colocada a recompensa neste acto, a decisão da pessoa passa perniciosamente a ser vendo ou não vendo, ao invés de faço o bem ou faço o mal.

Um outro estudo, este com a introdução estímulo negativo, foi levado a cabo pelo economista Uri Gneezy. Aqui, o autor observou o comportamento em dez infantários diferentes, quando foi introduzida uma multa a ser aplicada aos pais que se atrasassem a “recolher” as crianças. Contra-intuitivamente, os atrasos aumentaram de forma significativa, assim que as multas começaram a ser aplicadas. Novamente, aquilo que foi introduzido com o estímulo foi um preço em algo que não deveria ter um. A decisão dos agentes é deturpada. Entre fazer o correcto (chegar a horas) ou fazer o errado (atrasar), a pessoa decide como se de um investimento se tratasse: não faz mal que as funcionárias tenham que passar mais tempo no infantário por culpa do meu atraso, paguei para isso.

A equidade fiscal, a contribuição monetária para um estado que proteja as pessoas, o combate à economia paralela, devem ser valores da cidadania. Mas tal como nos dois estudos citados, nos quais os estímulos motivaram exactamente decisões negativas, é possível que a medida do governo possa ser adversa. Se é certo que o decreto de lei fala de cidadania fiscal, talvez a factura da sorte seja algo que retira precisamente a cidadania dos contribuintes. Olha para o cidadão como jogador. Duas conclusões. Quando voltar a perder tempo a soletrar um número de identificação fiscal, posso cair no mesmo raciocínio que me leva a não jogar no euro-milhões: o esforço não compensa a probabilidade baixa de ganhar um carro. Talvez fosse bem mais útil promover a qualidade e tornar evidente a necessidade das instituições que promovem o nosso bem-estar, as quais deveriam ser meta última da nossa responsabilidade fiscal. Talvez fosse bem mais útil dar certezas que o pagar e fazer pagar impostos é o gesto correcto. 

(as fontes dos estudos estão na net, não ia fazer disto uma coisa séria e expô-las, ora essa, é ir ao google) 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Estou te explicando...

...para te confundir.


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Choque de civilizações.



Depois de Hollande se ter armado em herói, Obama veio mostrar quem manda.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

dois sem-abrigo num semáforo


Quando a luz passa a vermelho, eles lá vão. Dois homens não novos, barba por fazer, um deles coxeia – nem interessa muito, mas duvido se o coxear trará mais benefício por despertar dó ou prejuízo por tornar lentos os movimentos. Vestem um colete vermelho, a legitimar a venda da revista Cais. Até está calor, mas há vidros que se fecham com o seu chegar. 

Os vidros fechados pregam sustos porque os dois homens podem esbracejar, bater com os nós dos dedos nas janelas, falar, tudo é infrutífero. Um dos sem-abrigo chega a julgar que em vez de carros está a abordar caixões onde o condutor é um cadáver, talvez mesmo de cera, com a cara para a frente sem pestanejar. Pode isto nem ser metáfora, provavelmente existe uma parte da pessoa que morre momentaneamente para que nasça essa indolência própria de semáforo vermelho.

Depois, o acordar. A paralisia do condutor dá lugar a uns pequenos movimentos. A mão mexe para corrigir a manete das mudanças. Se está vivo, talvez possa estender a mão com umas moedas. Não. Quando o semáforo fica verde-esperança, a esperança dos dois homens não novos desaparece. Hora de voltar ao passeio.