Dez euros em facturas
vão dar direito a ter um cupão da sorte, fala-se por estes dias. E
se a sorte bater mesmo à porta, trará com ela a felicidade de
ganhar um carro de gama alta. Dez milhões de euros são o total
deste investimento público.
Li duas críticas que
parecem bastante razoáveis. Em primeiro lugar, aponta-se o dedo à
medida por ser profundamente desigual na forma como trata ricos e
pobres: quem possui mais, mais gasta; quem mais gasta, mais
probabilidade tem de ganhar o carro. Enfim, não serão surpresa as
propostas deste governo que se pautem pelo fomentar da desigualdade
social. Em segundo lugar, o facto de serem oferecidos carros de gama
alta, dada a sua natureza poluente, não é um sinal carinhoso para o
ambiente.
Passando uma vista de
olhos pelo decreto de lei que propõe esta medida, há outra coisa
que me parece engraçado destacar. Lê-se que “a factura da
sorte tem por finalidade valorizar e premiar a cidadania fiscal dos
contribuintes no combate à economia paralela”.
Será?
Um velhinho estudo de 1970 por
Richard Titmuss, tão badalado na área da economia comportamental,
faz-nos pensar acerca da cidadania e dos efeitos dos incentivos.
Nesse estudo, o autor montou um cenário experimental em que os
participantes foram colocados numa de duas situações: ou lhes era
inquirido se queriam doar sangue livremente ou se queriam doar sangue
a troco de um incentivo monetário. Estranhamente, quando a
recompensa monetária é introduzida, as pessoas tenderam a doar bem
menos. Doar sangue tem um valor enorme, humano, moral, cívico. Um
valor que não pode ser coberto por nenhum prémio ou estímulo
positivo. Quando é colocada a recompensa neste acto, a decisão da
pessoa passa perniciosamente a ser vendo ou não vendo,
ao invés de faço o bem
ou faço o mal.
Um
outro estudo, este com a introdução estímulo negativo, foi levado
a cabo pelo economista Uri Gneezy. Aqui, o autor observou o
comportamento em dez infantários diferentes, quando foi introduzida
uma multa a ser aplicada aos pais que se atrasassem a “recolher”
as crianças. Contra-intuitivamente, os atrasos aumentaram de forma
significativa, assim que as multas começaram a ser aplicadas.
Novamente, aquilo que foi introduzido com o estímulo foi um preço
em algo que não deveria ter um. A decisão dos agentes é deturpada.
Entre fazer o correcto
(chegar a horas) ou fazer o errado
(atrasar), a pessoa decide como se de um investimento se tratasse:
não faz mal que as funcionárias tenham que passar mais tempo no
infantário por culpa do meu atraso, paguei para isso.
A
equidade fiscal, a contribuição monetária para um estado que
proteja as pessoas, o combate à economia paralela, devem ser valores
da cidadania. Mas tal como nos dois estudos citados, nos quais os
estímulos motivaram exactamente decisões negativas, é possível
que a medida do governo possa ser adversa. Se é certo que o decreto
de lei fala de cidadania fiscal, talvez a factura da sorte seja algo
que retira precisamente a cidadania dos contribuintes. Olha para o
cidadão como jogador. Duas conclusões. Quando voltar a perder tempo
a soletrar um número de identificação fiscal, posso cair no mesmo
raciocínio que me leva a não jogar no euro-milhões: o esforço não
compensa a probabilidade baixa de ganhar um carro. Talvez fosse bem
mais útil promover a qualidade e tornar evidente a necessidade das
instituições que promovem o nosso bem-estar, as quais deveriam ser
meta última da nossa responsabilidade fiscal. Talvez fosse bem mais
útil dar certezas que o pagar e fazer pagar impostos é o gesto
correcto.
(as fontes dos estudos estão na net, não ia fazer disto uma coisa séria e expô-las, ora essa, é ir ao google)
O carro é uma questão menor. Em causa, para mim e julgo que para muita gente, estará a dedução fiscal do iva de alguns sectores no IRS. Facilmente se chegará aos 200 ou 300 euros de iva, o que significa entre 30 a 45 a menos no irs. É pouco? Claro que sim mas como a despesa é garantida porque não aproveitar o beneficio?
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