sexta-feira, 25 de abril de 2014

o 25 de Abril


Há uns tempos lia uma entrevista do Pacheco Pereira onde este afirmava que a democracia é algo cultural, civilizacional e anti-natural. É verdade. Não há leis físicas que ditem a democracia. Estou certo que no futuro vou continuar a caminhar com a gravidade que me cola ao chão, mas não conjecturo acerca de viver num sistema democrático. A democracia é frágil, por ser tão tentador para uns tomar de assalto o poder de gerir, em seu proveito, o que é direito todos. Resta-nos portanto o alento de saber aquilo que aconteceu em Portugal, faz hoje 40 anos. Compreender que à semelhança da passarola do Bartolomeu de Gusmão, a democracia se alimenta das vontades, como aquelas tantas que se somaram nesse 1974. Mas não só. A democracia alimenta-se da solidariedade, da equidade, da justiça. Da qualidade da informação, da educação, da crítica, dos olhares atentos. Democracia, socialismo e transparência, em três vértices resumidos. A falta de algum torna os outros frágeis, ou perigosos. Por isso, o 25 de Abril foi tanto, e tanto falta fazer.


Às vezes, sinto curiosidade de ter vivido essa primavera. Só me retraio desse pensamento com a lembrança de que, para isso, teria de existir antes dela. Resta-me então ficar agradecido a quem lutou para possibilitar a revolução dos cravos: a cada militar ou militante, cada insubmisso, cada vinil do Zeca clandestinamente ouvido, cada passagem da rádio Voz da Liberdade escutada, cada livro ou folheto proibido. Enquanto português, tenho a certeza que logo a seguir ao meu aniversário, 25 de Abril é a data que mais molda e acarinha a minha vida.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O vilão.

Fui ter com ela pelo escuro. Ia rompendo o som do silêncio a cada passo, a rua estreitava à medida que escurecia. Os candeeiros de rua iam desaparecendo como oásis esquivos, deixando a iluminação às televisões que iam colorindo o ar, luz filtrada por janelas e estores rotos. Um passo, uma mirada para os lados, outro passo, outra vistoria às redondezas. Vinha na minha direcção um homem para me fazer mal, lá longe. Via-o negro, sem rosto, só casaco e capuz em corpo pequeno e maciço. Segui em frente, movido apenas pelo embaraço que seria voltar para trás. Senti uma gota a fugir-me da têmpora para o rosto, não sei dizer se seria suor ou uma das espaçadas gotas de chuva que o céu ia largando. Engoli em seco, baixei o olhar, apressei instintivamente o passo para evitar que o cruzamento se prolongasse, que palavras fossem ditas, mercadorias trocadas. Trazia a mão estendida para a frente, num passo também ele cada vez mais rápido, e eu imaginei facas e pistolas e armas de todo o tipo, imaginei todos os adereços comuns à vilanagem e outros só comuns na minha imaginação. Outra gota, na outra têmpora, para outra dúvida. O silêncio já tinha cessado para dar origem a um som de animal arfante que eu não dava conta ser. Só me ouvia o barulho, não sentia estar a fazê-lo. O encontro estava cada vez mais perto, era agora inevitável. Se falar para mim eu corro, se falar para mim eu corro, se falar para mim eu

- Boa noite.

e eu só quando comecei a correr lhe vi as pantufas rosas e o cão minúsculo que me perseguiu por dois metros a respirar pesadamente. Não tinha ponderado ouvir uma voz de mulher.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

a virtude do carlos paredes

Há uns dias vinha a ouvir no rádio a transmissão do I Encontro da Canção Portuguesa. Nem costumo ouvir muito rádio, mas eis que sem o procurar, a Antena 1 me deleita com a lembrança de um episódio da nossa história que achei tão bonito e curioso. Nesse evento, a 29 de Março do mesmo ano da revolução de Abril, não faltaram os momentos em que a união dos presentes, especialmente contra a censura, deram a entender a podridão do regime que menos de um mês depois viria a cair. Essa é para mim a parte bonita. A parte curiosa advém de comparar as reacções do público, face ao quarteto de Marcos Rezende e ao Carlos Paredes. O primeiro tocou jazz. Ouviram-se assobios, a malta queria era uma letra para cantar. O quarteto não conseguiu terminar a actuação, sendo literalmente escorraçado. Depois, entra o Carlos Paredes com a Verdes Anos. Nem uma palavra da audiência, só silêncio e emoção, apesar da igual inexistência de letra ou vozes. E pronto. Na falta de melhor resumo, tenho para mim que a virtude do Carlos Paredes foi conseguir falar com uma guitarra. Sem usar palavras, mas a saber dizer tanto.