sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O espontâneo

No elevador industrial vivia aquela pobre alma cansada do peso da sua gravidade, da gravidade do seu viver. Como lhe atravessava os olhos tão transparentes de lágrimas coaguladas e desmontava e desfigurava aquele sorriso mostarda velha. Como sentia a evaporação lenta e quente do desejo da inspiração carnal. Uma frívola obrigação da besta social plantara seus braços ainda moços e formosos no aço frio e húmido, e quais galhos outonais rangiam de botão em botãozinho, tic tic tuc, um dois quem sabe três, e recebia este meu mundo de esguelha:

- Olá muito boa tarde senhores, qual o andar? Com certeza. Belo dia hoje não? Esperemos que continue assim mais uns dias. Muito obrigado e voltem sempre.

E descia, e lavava-se a roupa da multidão, e subia.

- Olá muito boa tarde senhores, qual o andar? Com certeza. Belo dia hoje não? Esperemos que continue assim mais uns dias. Muito obrigado e voltem sempre.

Continuei observante, ave de rapina. Ai, a vontade de sugar sua evaporação e soprá-la violentamente aos olhos. Pensei vestir o traje de ser humano, como eu adoro disfarces, e dar-lhe um pontapé no traseiro, pobre donzela. Roubar-lhe a dor, apresentar-lhe a luz e introduzi-la ao bater do coração. Umas palavras, dizem-me jeitoso com palavras. Era na chegada que a interpolaria. Descíamos portanto a enésima sétima vez e eu preparava a bota e a boca para ajudar minha mendiga de espírito.

- Olá muito boa tarde senhores, qual o andar? Com certeza. Belo dia hoje não? Esperemos que continue assim mais uns dias. Muito obrigado e voltem sempre.

Apenas no vazio do meu pensamento ecoaram as palavras que não disse. Alguém respondeu espontaneamente à senhora amarga, e do fundo dos confins sei lá de onde dos cinco por cinco metros do elevador gritou, assim, como se grita respondendo ao que nunca tem resposta:

- É QUERERES!

E apostaria todos os meus tostões que esta meia página idiota que nunca aconteceu poderia naturalmente ter ocorrido, não fosse haver senhoras tristes no mundo, pessoas que sobem e descem e pensam e sentem e não falam e marmanjos espontâneos. Hoje arranjei um marmanjo espontâneo para nós. Aproveitem que vale a pena.

Seja bem vindo, meu caríssimo André.

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