domingo, 13 de dezembro de 2009

um fim ao mundo






Na tarde em que o céu, de tão carregado quase podia descolar-se do papel de cenário e matar o mar, sem avisar nem os peixes nem o sal, via-me a correr numa sala branca de luz, por uma passadeira vermelha sem fim, chamar aqui e ali deuses, avisar aqui e ali homens, sem eco nem resposta. Sentir o mundo na ponta de uma varinha mágica pesa nos pulsos, acreditem, e na realidade não era era magia, tão pouco varinha, e do mundo apenas o fim. Podia ser já no dia seguinte, uma terça-feira aquecida pelo último setembro, e a sê-lo, espero que nunca antes das sete da tarde. De manhã nem pensar, seria cruel roubar o acordar, ou o pequeno-almoço a dois, ou a três, ou sozinho, ou nem pequeno-almoço, ou nem acordar. Há hora de almoço só em último caso, jamais de ânimo leve correr o risco de interromper a última refeição e deixar para a poesia futura uma mal sonante meia-última-refeição, na dúvida, deixem os bichos acabar a sobremesa antes de lhe lavarem para sempre a loiça. Nunca antes das sete da tarde. Nunca antes do último banho no mar, da última música, da última bala, do último delírio, do último passeio, do último beijo, do último murro, do último tiro, da última esmola, da última morte, da última mão cheia de areia contra o tanque, do último grito, do último ranger de dentes, da última folha riscada e no lixo, do último fechar de olhos. Deixem chegar a casa o corpo cansado, poisar as chaves na mesa, gritar o nome de alguém, abraçar o nome de alguém, tirar da caixa dos bolos da cozinha um bolo da caixa de bolos da cozinha e comer tudo menos as migalhas do chão ou chegar a casa e os olhos comidos não verem casa, as palmas da mão na terra queimada, chorar o nome de alguém, abraçar o sangue de alguém, tirar da caixa da raiva uma lágrima e limpa-la antes do bater no chão. Na sala branca o tempo foge por debaixo dos passos, e do branco-luz começam a aparecer vidros com rostos pálidos, fotografias ou reais, é tudo igual (antes fotografias, essas não passam fome), e cada vez mais rostos pálidos. A mesma passadeira vermelha por debaixo dos passos, o mesmo tempo a correr. Rostos, tirar-me-iam o remorso de premir o gatilho e alvejar para sempre os segundos, os minutos e as horas. Pela derradeira vez cheirar os eucaliptos lá longe, esperar que as garças aterrem e o vento se cale. Encher os pulmões e mesmo antes de os ter vazios, ouvir dos rostos um terço de agora não e dos rostos dois terços de finalmente.


@fotografia: odeceixe, novembro 2009

6 comentários:

  1. obrigado, acho eu =P
    fernando

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  2. Permite-me o comentário...

    Não pude deixar de ler o teu texto... Gostei do sentimento, da entrega, da emoção emprestada às palavras...
    Permiti-me o devaneio de na tua última frase ter feito a inflexão mental para olhar um rosto dizendo o terço em 'agora' e os outros dizendo o terço em 'finalmente'...Creio que assim (me) faria mais sentido...

    Não gostei que tivesses dado tantos pontapés na gramática. Que alguns possam ser considerados do ponto de vista da prosódia como necessários ou até belos, como "antes DO bater no chão" que regularmente seria "antes DE bater no chão", outros há que são inadmissíveis como "biXos" ou "por baixo dos" ao invés de "por debaixo dos"...

    De resto, meramente por gosto pessoal, não reforces as coisas demasiado... deparei-me com imenso peso nas enumerações, quase uma opressão... será que não querias algo igualmente profundo mas mais leve como a brisa oceânica no crepúsculo morrente em Odeceixe?...

    Continua... haja alguém que ainda vai publicando os seus escritos...

    Marquês de Marialva

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  3. o titulo é que nao foi grande escolha =P

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  4. muito obrigado pelas correcções e força na sugestão de um novo título =)

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  5. Bom, proponho este título...

    Que tal "Ocaso socado num saco ao acaso" =)?

    Agora mais seriamente "...intimações ocasionais..."

    Marquês de Marialva

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