sexta-feira, 3 de junho de 2011

and now for something completely different (V)

O agente Henriques corava sempre que lhe diziam que era uma pessoa extremamente atenta. Sabia ser verdade, então mentia quando acrescentava 'Não sou nada'. É certo que se não fosse uma pessoa extremamente atenta, não teria notado aquela pequena criança a esboçar um sorriso, mesmo ao cruzar da esquina. Deu logo uma cotovelada ao colega agente, em sinal de alerta. Por ser uma pessoa extremamente atenta, o agente Henriques conhecia as leis. E sabia que há anos que no país vigorava a malograda lei que previa a punição severa a quem ousasse rir ou sorrir. Legitimavam os legisladores, que o riso prejudicava a produtividade.


Os agentes interpelaram a criança violentamente, que por ter ficado em tamanho sobressalto, apontou e respondeu sem medir consequências, 'está ali um palhaço'. O agente Henriques, e por além de extremamente atento ser extremamente perspicaz, reparou logo num homem com idade avançada que se deslocava com andar suspeito, como se estivesse a forçar os pés para não caminhar como Charlot caminhara. O agente Henriques segurou o cassetete antes de colocar a mão no ombro do homem. Amedrontado, o homem ainda negou a calúnia de ser palhaço, mas não pode confrontar os factos, quando o agente lhe descobriu por baixo do olho direito vestígios de tinta preta. 'Aposto que era um lágrima pintada, patife'.


O Palhaço foi levado para uma esquadra de alta segurança. Se a pena era pesada para os que riam, mais pesada era para os que faziam rir. O Palhaço incorreu numa pena de cinco a vinte e cinco anos de prisão. Começou a cumprir sentença dois dias depois de ser capturado, por obra de um julgamento sumário onde, e passo a redundância, nenhum palhaço o ousou defender.


Por ter dentro do seu invólucro de palhaço um homem de sérias convicções, o Palhaço decidiu, na prisão, recomeçar o seu ofício. Numas quantas tardes clandestinas, actuava para um grupo restrito de vizinhos de cela. A ritmo considerável, o grupo inchou. Inchou ao ponto de todos os presos estarem incluídos. Claro que os agentes, por serem atentos, repararam que a uma hora pontual, todos os reclusos desapareciam. Investigaram com toda a atenção e foram subtilmente dar com o esconderijo das palhaçadas. Remeteram o ofensivo caso para instâncias superiores que responderam atempadamente com um cordial 'Não sabemos que fazer'. E ninguém sabia, de facto. Não havia pena de morte nem tortura, porque das poucas vezes em que tentaram aplicar essas penas, as entidades responsáveis não conseguiram conter o riso na altura dos actos. Não continham os ataques de riso perante as caras dos torturados e dos mortos. Então, para não obrigar as instâncias superiores a incorrer em crimes graves, não havia tortura nem pena de morte. O mais que se podia fazer era engrossar a pena de prisão aos presos.


Quando o tentaram, os presos riram. Não se importavam. Ali eram felizes, podiam rir com as palhaçadas do Palhaço. E dar-lhes mais tempo de riso por estarem a rir, era uma receita saborosa para os enclausurados. Rapidamente a prisão se encheu de condenados a prisão perpétua. Condenados que não se importavam de o ser: podiam agora livremente passar o dia a rir. Coisa que não podiam fazer em liberdade.


Ao exterior, as notícias chegaram rápido. Numa cadeia de insubordinados, os presos começaram a rir, à revelia da lei. Coisa curiosa, pensavam as pessoas. Fartas do cinzentismo da vida quotidiana em que não podiam rir, as pessoas começaram a fazer contas à vida, e arranjar esquemas para poderem ir presas.


A epidemia alastrou. A já grande prisão no país teve que ser aumentada. Aos poucos, os guardas começaram a não resistir e sucumbiram também eles ao riso. Começaram a prender-se uns aos outros. Ficou por último um guarda solitário, que era já das pessoas que mais ria na prisão. Não havia guardas para o prender. As pessoas continuavam a pingar nas celas, ao ritmo de chuva tropical. A lei mantinha-se intocável. Fora daquelas paredes, ninguém podia rir. A já grande prisão no país teve que ser aumentada.


Passados anos, já não se distinguia o mundo da prisão nem a prisão do mundo. E tempos depois, até foi o agente Henriques, extremamente atento, que disse para uma criança que cruzava um esquina 'Porta-te bem ou vais presa. E na prisão há uma lei que te impede de rir'.

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