segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Carruagem dos Iguais

Eram perto das oito da noite e estava num comboio. Estava a correr bem, a viagem. Sem fome, sem sede, na companhia de um qualquer livro. Ás páginas tantas, encontrei uma frase que mereceu a minha reflexão. Leviana ou não, tal cisma impeliu-me a olhar para a direita e lá estava ele. Lugar 21, mesmo na minha diagonal, a respirar o ar de toda a gente. Julguei ter visto mal, mas disfarçadamente lá passou da dúvida à certeza, que o indivíduo ali tão perto, piscava os olhos duas vezes em cada ciclo de piscadela. Como não reparou o revisor? Aliás, como conseguiu ele bilhete para um transporte dito público (entenda se por público, de gente normal)? Enfim, não era uma aberração que me ia estragar a leitura, mas o ser acabou por motivar que tivesse trocado tempo despendido a ler, por tempo em conversa com o homem sentado junto a mim. Velho, aspecto conservador, confirmou as minhas notas de primeira impressão: a vida havia-lhe cravado a bom cravar as chagas características da imunidade e intolerância ás monstruosidade da sociedade, tal e qual como a que em cima documentei.
Disse-lhe eu:
-Também viu?
Sussurrou com os dentes fechados de raiva:
-Mas alguém é capaz de num ver aquela merda? Não há respeito, o mundo tá fudido.
E cuspiu ainda alguma palavras embrulhadas em palavrões. Acrescentou:
-Estão em todo o lado. Alguns cabrões disfarçam bem e chegam alto na vida. A mim nunca me enganam... Se apanho algum dia um sozinho, parto lhe os cornos todos. Não quero saber se é da puta da genética ou se faz aquilo porque gosta.
Acenei, concordei. Continuei a leitura. Estivemos calados durante cinco minutos. Quando voltei a desatar os olhos do livro, já o anormal do lugar 21, que piscava os olhos não uma mas duas vezes, havia saído. Tal não foi, no entanto, motivo de regozijo para o meu parceiro, cujas preocupações pareciam agora estranhamente colar-se a mim. Havia ódio e desdém nos seus olhos, que pude comprovar fixamente até que o indivíduo se levantou bruscamente. Minutos depois regressou, fazendo-se acompanhar pelo revisor. Este último brandiu silenciosamente mas com violência:
-A sua carruagem não é aqui!
Acompanhou-me então ao que disse ele ser o meu lugar. Era uma das últimas carruagens, pelo aspecto, a mais degradada. Lá dentro havia vinte pessoas, no lugar que seria apertado para quinze. Por cima da porta, podia ler-se numa placa:
Carruagem para os que acompanham a leitura com o dedo.

PS (1) O ridículo mora ao lado, e era bom, bonito, talvez (infelizmente) utópico que morresse quando e onde morrem as metáforas.
PS (2) O próprio papa nomeou para bispo auxiliar um tal senhor da igreja que defendeu convicta e publicamente que o furacão Katrina foi uma praga divina para irradicar a homossexualidade de Nova Orleães.
PS (3) Ascendeu ao cargo de primeira ministra da Islândia, Johanna, homossexual assumida. Triste, que esteja em notícias televisivas, jornais e num post deste blog pela sua orientação sexual e não pela sua (comprovada) capacidade política.


A diferença existe, sim. Haja respeito.

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